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Maçãs e Uvas | Fábula | Por Ítalo Silva

 Era uma vez, em um reino não tão distante, um lugar onde seus habitantes buscavam, com fervor, a felicidade em seus dias. O rei, carinhosamente chamado de PAI-BOM, era conhecido por sua bondade e sabedoria. Ele percorria as ruas do reino, trazendo sorrisos aos rostos de seu povo, enquanto sua voz ressoava como um suave eco prometendo um futuro próspero. 

Porém, ao seu lado estavam os "porta-vozes", que se autodenominavam representantes do bom rei. Eles, com a pompa de quem portava verdades Labsolutas, começaram a distorcer as mensagens de PAI-BOM. Sentados em mesas adornadas com frutas, eles debatiam entre si e, com gestos amplos, diziam: "O rei deseja que todos sejam felizes, mas precisamos cuidar do seu bem-estar. As regras são necessárias!" 

Um dia, durante uma assembleia, um dos porta-vozes se levantou, com a voz firme, e proclamou: "A partir de hoje, homens comerão somente maçãs e mulheres somente uvas!" A sala ficou em silêncio, exceto pelo som de uma maçã sendo mordida. O murmúrio que se seguiu foi de estranheza e inquietação. As pessoas olhavam-se desconfiadas, trocando olhares nervosos. "E se eu desejar uvas?" sussurrou uma mulher a seu lado, com receio.



Com o passar dos dias, a regra tornou-se lei, e muitos começaram a sentir o peso da restrição. Os homens, ao vislumbrarem uvas na feira, desviavam o olhar, enquanto as mulheres suspiravam ao ver as maçãs reluzentes. Assim, a alegria deu lugar à tristeza. Era um reino onde todos, mutilados por regras, cultivavam seus desejos em silêncio.


O príncipe, um jovem de olhos brilhantes e sorriso contagiante, também começou a sentir-se aprisionado. "Por que não posso querer uvas?" ele questionava a si mesmo, enquanto na praça observava as frutas proibidas. Abatido, ele murmurava em seus pensamentos: "Se ao menos eu pudesse falar ao meu pai sobre isso, talvez tudo se resolvesse."

Em um dia ensolarado, o príncipe decidiu visitar o pai. "Ó pai, posso falar com você?" ele pediu, um tremor na voz. PAI-BOM olhou para ele com um sorriso caloroso e respondeu: "Claro, meu filho. O que pesa em seu coração?" 

Mas o medo o dominava. "É que... eu não posso... eu... eu quero uvas!", o príncipe confessou, a voz quase um sussurro. "Mas os porta-vozes dizem que é errado!"

O rei franziu a testa, surpreso. "Meu filho, você tem o direito de desejar o que faz seu coração feliz. Eu jamais puniria você por seus desejos. Eles estão deturpando o que eu realmente quero para você!"

Mas os conselheiros estavam sempre por perto, e suas vozes ecoavam como sombras. "Não ouça o rei, jovem príncipe! Se você desobedecer, serão consequências severas!" Um dos conselheiros, de olhar severo, advertiu: "O rei é um justo juiz, e sua desobediência não será tolerada."

Com isso, o príncipe se afastou, o coração pesado e confuso. "Talvez eu devesse simplesmente aceitar as maçãs," pensou, mas a imagem das uvas não saía de sua mente. Uma noite, ao se sentir tomado pela solidão e pela privação, ele decidiu experimentar. Escondido sob a luz da lua, ele comeu um punhado de uvas, o aroma doce preenchendo seus sentidos.

"Estou apaixonado por uma uva!" ele exclamou numa mistura de alegria e temor. Mas, imediatamente, o medo tomou conta dele novamente. "E se descobrirem? O que farão comigo?" Ele correu para longe, escondendo-se sob a sombra das árvores.

Os porta-vozes logo souberam sobre seu ato de rebeldia. "O príncipe foi visto perto do parreiral!" gritaram, enquanto se voltavam para a praça onde o povo se reunia. "Ele está se desviando do caminho!" A agitação crescia e os vilarejos começaram a murmurar sobre seu comportamento, chamando-o de rebelde e desonesto.

O rei, angustiado, decidiu buscar seu filho. "Mandem trazer o príncipe," ordenou. "Mas tragam-no em liberdade, e não em correntes!" Ele sabia que o amor poderia conquistar o medo. As buscas começaram, mas os soldados encontraram dificuldade em convencê-lo a voltar. "Pede perdão à sua razão, príncipe. Seu pai quer te salvar," disseram eles, mas o jovem relutou.

Certa manhã, o príncipe acordou sob um parreiral, sua mente cheia de confusão. Ele se lembrou de mais um momento de tristeza e dor. Sua cabeça estava cheia de dúvidas. "Por que é tão errado ser eu mesmo?" questionou, quando, de repente, um servo silencioso, de olhos azuis brilhantes como o céu, surgiu ao seu lado. "Meu príncipe," ele disse, "o rei está preocupado com você. Ele só deseja seu bem. Aqui, leve isto." O servo extendia uma carta, que trazia as palavras do rei.

Com um coração acelerado e mãos trêmulas, o príncipe abriu a carta e começou a ler: "Saudades, meu querido filho! Quero que saiba que sempre estarei aqui por você, amando-o incondicionalmente. Não deixe que as vozes distorcidas lhe digam o contrário. Desejo ver você feliz, exatamente como você é. O amor que sinto por você não conhece regras, apenas deseja sua liberdade e autenticidade."

Lágrimas de alegria escorriam pelo rosto do príncipe ao se dar conta de que seu pai nunca quis aprisioná-lo, mas sim libertá-lo. "Preciso encontrá-lo!" ele exclamou, a esperança renascendo em seu coração. "Vou até ele!"

E, finalmente, ele correu para os braços de seu pai, que o abraçou com carinho. "Meu filhinho, sempre soube que o amor é o que rege quaisquer escolhas." O príncipe sorriu, agora livre para amar sem medos. Ele decidiu que não importavam as regras de outros; o que realmente importava era ser fiel a si mesmo.

Daquele dia em diante, o reino aprendeu uma valiosa lição: a verdadeira felicidade não se encontra em regras imposta, mas na liberdade de ser quem realmente somos, e no amor que se compartilha sem temor. E assim, maças e uvas foram servidas lado a lado em banquetes, espalhando alegria a todos que tinham coragem de desejar o que seus corações almejavam. Eles dançavam sob a luz da lua, celebrando a liberdade que encontraram em seus próprios desejos. 

E o rei, agora cercado por um povo feliz, sorriu, sabendo que o amor é a resposta mais pura que pode existir no coração humano.




Comentários do autor sobre: Esse texto foi escrito no final da minha adolescência, relendo hoje, após quase 20 anos do dia e contexto da composição, eu relevo cinco pontos de interpretações, são eles:

- Simbolismo do Rei e dos porta-vozes: Na fábula, o rei PAI-BOM representa um Deus amoroso que anseia pela felicidade de seu povo, enquanto os porta-vozes encarnam figuras de autoridade religiosa que distorcem a mensagem, impondo regras rígidas que geram medo e repressão.

- Conflito entre liberdade e doutrinação: O príncipe, ao desejar uvas, simboliza a busca por autenticidade e liberdade individual. Sua luta interna reflete o dilema de muitos que se sentem limitados por normas sociais e dogmas religiosos, que frequentemente reprimem os desejos naturais.

- Ressignificação da espiritualidade: A descoberta da carta do rei pelo príncipe representa a revelação da verdadeira espiritualidade — baseada no amor incondicional e na aceitação de si mesmo. Esta transformação destaca a importância de libertar-se das regras que cercam a fé e a autenticidade pessoal.

- Crítica à moralidade imposta: A narrativa expõe como a moralidade, moldada por instituições, pode servir como uma ferramenta de controle que aliena os indivíduos de sua verdadeira essência. Isso é exemplificado nas regras alimentares, que refletem hierarquias de gênero e opressão patriarcal.

- A Busca pela autenticidade: Ao abordar a luta do príncipe contra as imposições sociais, a fábula se torna uma alegoria poderosa para a busca da liberdade e da autenticidade. A libertação do patriarcado e das normas repressivas é crucial para cultivar relações genuínas e a verdadeira essência de cada ser humano.

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