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Onde a dor pode ser compartilhada?

 


A frase "É uma deslealdade cruel ter que não expressar seu sintoma por entender que sua expressão alcança o sintoma do outro" nos convida a uma reflexão profunda sobre o "mistério" das relações humanas e a dinâmica dos sintomas psíquicos. Neste contexto, podemos usar as contribuições filosóficas de Nietzsche, bem como as alterações psicanalíticas de Lacan e Freud, para explorá-la de alguma maneira.

Imagine um indivíduo que carrega em si um peso invisível — seu sintoma. Este sintoma não é apenas uma marca interna de dor ou descontentamento, mas uma expressiva indicação de sua luta interna. Contudo, ele se vê em um dilema: ao expressar esse sintoma, ele pode tocar na dor do outro. Para Nietzsche, a expressão de seus sofrimentos é um ato de afirmação da vida, um "grito do eu" que ressoa na busca pela autenticidade e pela superação dos próprios limites. Ele disse uma vez que "o que não me mata me fortalece", enfatizando a importância de enfrentar nossas dificuldades e transformá-las em força. 

Contudo, essa leitura nietzschiana do sofrimento se choca com uma realidade interpessoal complexa. Lacan, em sua abordagem, explica que os sintomas são frequentemente interligados — "o desejo é o desejo do outro". Isso sugere que cada sintoma que não expressamos não é apenas uma carga pessoal, mas também uma interseção com os sintomas daqueles ao nosso redor. O ato de não expor nossa angústia torna-se, assim, uma estratégia inconsciente de proteção das fragilidades alheias, uma forma de sustentar, de alguma forma, o fluxo emocional que poderia reverberar, agravando o sofrimento coletivo.

Ademais, quando dizemos que "conviver, além de impossível, é uma desgraça", somos levados a refletir sobre as dificuldades intrínsecas de se relacionar em uma sociedade repleta de conflitos internos e externos. Freud aponta que as relações interpessoais são frequentemente palco de um contínuo jogo de forças, onde cada pessoa está imersa em seus próprios desejos, frustrações e sintoma. Ele enfatiza a natureza dialética do nosso ser, em que cada interação é permeada por angústias e desejos que buscamos evitar. O que fica claro é que a expressão dos sintomas não se dá em um vácuo, mas sim em um espaço onde o impacto no outro se torna uma preocupação significativa.

A frase sugere, portanto, uma contraposição entre o desejo de autenticidade e a necessidade de cuidado. A tensão entre a liberdade de expressar nossos sintomas e o medo de ferir ou influenciar o outro nos coloca em um impasse existencial. Como sobreviver sem esses contraditórios? Essa é uma pergunta que ecoa em nossas vidas diárias. Seria possível encontrar um equilíbrio onde o enfrentamento do eu e o respeito pelo outro possam coexistir? 

Lacan propõe que a busca impossível pela comunicação, mesmo quando marcada por sintomas, é o caminho para a relação  e, assim, a superação das barreiras emocionais. Portanto, vozes que se unem, mesmo que ensaiadas por angústias e descontentamentos, têm o potencial de criar um espaço de compreensão mútua.

Neste contexto, a deslealdade cruenta de reprimir o que somos resulta numa tragédia potencial, tanto para o sujeito quanto para os que o cercam. Por outro lado, o convite para a exposição do sintoma — mesmo que angustiante — pode também ser um caminho para a cura e entendimento mútuo. Ao finalmente reconhecermos que nossa dor, embora particular, fala a uma experiência mais ampla compartilhada, podemos cultivar espaços de empatia em vez de desespero.

Mesmo que desafiador é interessante  confrontar a dualidade da convivência humana, vivendo a autenticidade do nosso ser e reconhecendo que, embora os sintomas possam ser pesados, sua expressão pode, paradoxalmente, ser um gesto de solidariedade que promove conexão e transformação. Portanto, fazer frente ao dilema dos sintomas não é apenas um exercício individual, mas um convite à construção de uma rede de relações onde a dor possa ser compartilhada, compreendida e, finalmente, transfigurada.

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