A patologização da vida - Todo mundo tem um diagnóstico?
No entrecruzamento entre o discurso capitalista e o imperativo do gozo, testemunhamos hoje um fenômeno peculiar: a transformação massiva da experiência humana em categorias diagnósticas. O sujeito contemporâneo, confrontado com sua falta constitutiva (manque-à-être), busca desesperadamente no Outro um significante-mestre que possa nomear seu mal-estar.
A indústria farmacêutica, operando como um Grande Outro contemporâneo, oferece uma promessa sedutora: para cada manifestação da falta, um medicamento; para cada angústia, uma pílula. Este discurso, articulado com a lógica do capital, produz um curto-circuito no processo de subjetivação, onde o sintoma - essa formação singular do inconsciente - é reduzido a uma disfunção neuroquímica a ser corrigida.
O DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) assume, assim, o lugar antes ocupado pelos textos sagrados: um manual que promete revelar "quem somos" através de uma taxonomia do sofrimento. O sujeito, alienado em seu próprio desejo, busca nestes significantes-mestres (S1) uma ancoragem identitária que o proteja do real da existência.
Quando dizemos que "todo mundo tem um transtorno", estamos diante de um fenômeno que Lacan poderia caracterizar como uma forclusão da singularidade. O egoísmo, manifestação do narcisismo primário freudiano, é rapidamente catalogado como "transtorno de personalidade narcisista". A oscilação natural dos afetos transmuta-se em "bipolaridade". A inquietude própria do desejo inconsciente recebe o rótulo de "TDAH".
Esta operação não é sem consequências: ao nomear o mal-estar exclusivamente através do discurso médico-psiquiátrico, obliteramos a dimensão do sujeito do inconsciente e sua relação particular com o gozo (jouissance).O discurso capitalista, como Lacan o formulou, promove uma subversão da lógica do desejo. Se no discurso do mestre havia um impossível estrutural, uma castração simbólica que mantinha o desejo em movimento, o discurso capitalista promete sua superação através do consumo infinito de objetos plus-de-jouir - entre eles, os psicofármacos.
A patologização da vida serve, assim, a dois mestres: ao capital, que transforma o sofrimento em mercadoria, e ao ideal científico de uma existência sem falhas, regulada por protocolos e evidências.
A angústia, como nos ensina Lacan, não engana. Ela é precisamente o sinal do real, aquilo que não pode ser simbolizado. A tentativa contemporânea de eliminá-la através da medicalização generalizada representa um recuo diante da verdade do sujeito.
O que observamos é uma sociedade que, em sua busca por "funcionamento adequado", recalca a própria dimensão do desejo. A pergunta "como funcionar?" substitui a questão fundamental do desejo: "che vuoi?" (que queres?).
Frente à patologização da vida, a psicanálise sustenta uma ética da singularidade. O sintoma, longe de ser apenas um déficit a corrigir, é uma construção singular que diz algo da verdade do sujeito. Sua escuta não pode ser reduzida a um manual diagnóstico, por mais extenso que este seja.
A verdadeira questão não é "qual transtorno tenho?", mas "qual é minha posição frente ao desejo?". Esta pergunta não encontra resposta nos compêndios médicos ou religiosos, mas no trabalho singular de cada análise.
A patologização da vida representa um sintoma social de nossa época, onde o discurso capitalista, aliado ao cientificismo, promete uma impossível harmonização do sujeito com seu gozo. Contra esta tendência, a psicanálise sustenta a importância da singularidade do sintoma e do desejo.
O mal-estar na civilização, como Freud nos alertou, é estrutural. Nenhum manual ou medicamento poderá eliminá-lo completamente. A questão é como fazer com ele algo que seja da ordem de uma invenção singular, e não de uma mera adequação a protocolos estabelecidos.
A saída não está na multiplicação de diagnósticos, mas na possibilidade de cada sujeito encontrar sua forma particular de lidar com o real da existência, sustentando seu desejo e sua singularidade frente aos imperativos de normalização de nossa época.
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