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A filha como espelho e rival

Resumo:

Este artigo ensaísta aprofunda a investigação psicanalítica sobre a competitividade feminina na relação mãe-filha, com foco na estrutura histérica e sua relação com o masculino. Partindo da concepção lacaniana da histeria como uma busca por um desejo impossível e um constante questionamento do Outro, analisamos como a mãe histérica não apenas projeta na filha suas angústias, mas também manipula a figura simbólica do masculino (pai, parceiro, etc.) para garantir sua posição central e narcísica nas relações. Essa manipulação, nem sempre evidente, pode se manifestar tanto através da vitimização quanto da exaltação, desde que o lugar de centralidade seja mantido. A competitividade com a filha, nesse contexto, torna-se um palco para a encenação dessas dinâmicas.

Palavras-chave: Histeria; Competitividade Feminina; Relação Mãe-Filha; Psicanálise Lacaniana; Masculino Simbólico; Narcisismo.

1. Introdução: A Histérica e a Dança com o Falo**

A histeria, como estrutura subjetiva, se caracteriza por uma relação peculiar com o desejo e com a figura do Outro. Freud, em "Estudos sobre a histeria" (1895), já observava a ligação entre a histeria e a sexualidade, em especial a repressão dos desejos sexuais. Lacan, retomando Freud, complexifica essa relação ao introduzir o conceito de *falo* como significante do desejo. A histérica, em sua busca incessante por reconhecimento, questiona o Outro, o portador do falo, numa tentativa de desvelar sua falta e, ao mesmo tempo, ocupar o lugar de objeto de seu desejo. "O que quer uma mulher?", pergunta Lacan, ecoando a questão freudiana. A resposta, longe de ser unívoca, aponta para a busca por um lugar de completude impossível, que se manifesta na relação com o Outro e, em particular, com o masculino.

A frase "a mulher não existe" (LACAN, 1972-1973, p. 18), nesse contexto, não nega a existência biológica da mulher, mas sim a possibilidade de uma definição universal e essencializante do feminino. A mulher, para a psicanálise lacaniana, se define em sua relação singular com o falo, com a falta e com o desejo. É nessa relação complexa que a histérica se move, buscando, através de diversas estratégias, ocupar o lugar de objeto do desejo do Outro.

2. A Mãe Histérica e o Triângulo Edípico Revisitado: O Pai como Instrumento

A relação mãe-filha, em especial na estrutura histérica, é marcada por uma intensa ambivalência, onde amor e rivalidade se entrelaçam. A mãe histérica, presa em seu próprio desejo insatisfeito, projeta na filha suas angústias e expectativas, transformando-a em um espelho de seus próprios ideais e frustrações. Mas a dinâmica não se restringe à relação dual mãe-filha. O pai, ou a figura que ocupa o lugar simbólico do masculino, entra em cena como um elemento fundamental nessa orquestração relacional.

A mãe histérica, em sua busca por manter-se no centro das atenções, pode utilizar o pai como um instrumento para atingir seus objetivos narcísicos. Essa utilização pode se manifestar de diversas formas:

Vitimização: A mãe pode se apresentar como vítima do pai, seja por sua ausência, por sua suposta falta de atenção ou por qualquer outra queixa que a coloque em uma posição de fragilidade e carência. Essa estratégia visa despertar a compaixão e a lealdade da filha, que se vê compelida a tomar o partido da mãe e a condenar o pai. Exemplo: A mãe se queixa constantemente da falta de romantismo do pai, buscando na filha uma confidente e aliada, reforçando a imagem do pai como insensível e distante.
Triangulação: A mãe pode criar triângulos amorosos ou de rivalidade, envolvendo a filha e o pai (ou outra figura masculina). Por exemplo, pode flertar com o pai na frente da filha, gerando ciúmes e competição, ou pode usar a filha como mensageira de suas insatisfações, colocando-a em uma posição desconfortável de intermediária. Exemplo: A mãe elogia excessivamente a filha na frente do pai, comparando-a implicitamente a ele, gerando um clima de competição velada.
Idealização e Desqualificação Alternadas: A mãe pode alternar entre momentos de idealização do pai, em que o exalta como um herói ou um provedor exemplar, e momentos de desqualificação, em que o critica e o diminui. Essa ambivalência confunde a filha e a impede de construir uma imagem estável e coerente do pai. Exemplo: Em um momento, a mãe elogia o pai por seu sucesso profissional, em outro, o critica por sua falta de tempo para a família.
Alienação Parental: Em casos mais extremos, a mãe pode manipular a filha para que ela rejeite o pai, criando uma aliança exclusiva entre elas e excluindo o pai da dinâmica familiar. Essa estratégia visa garantir o controle total sobre a filha e a satisfação de suas próprias necessidades narcísicas.

3. A Filha no Palco da Competição: Entre o Espelho e a Espada

A filha, inserida nesse complexo jogo de projeções e manipulações, se vê em uma posição delicada. Ela é, ao mesmo tempo, o espelho da mãe, refletindo seus desejos e frustrações, e a rival, disputando a atenção e o amor do pai (ou da figura masculina). Essa ambivalência gera na filha uma profunda angústia, pois ela se sente dividida entre o amor pela mãe e a necessidade de construir sua própria identidade.

A filha pode responder a essa dinâmica de diversas formas:

Identificação: Pode identificar-se com a mãe, reproduzindo seus padrões de comportamento e buscando, ela também, ocupar o lugar de objeto do desejo do Outro.
Rebeldia: Pode rebelar-se contra a mãe, buscando diferenciar-se dela e construir um caminho próprio, o que nem sempre é fácil, dado o peso da influência materna.
Submissão: Pode submeter-se à mãe, renunciando a seus próprios desejos e necessidades para agradá-la e evitar conflitos.
Busca por um "Pai Ideal": Pode idealizar o pai, ou outra figura masculina, como um contraponto à mãe, buscando nele o reconhecimento e a validação que não encontra na relação materna.

4. Para Além do Narcisismo: A Construção da Singularidade

A superação dessa dinâmica complexa e, por vezes, dolorosa, passa pela possibilidade de a filha construir sua própria identidade, para além da sombra da mãe e da influência do pai. A psicanálise, como espaço de escuta e elaboração, pode auxiliar nesse processo, permitindo que a filha se aproprie de seu próprio desejo e construa sua singularidade. Como afirma Lacan, "o desejo é o desejo do Outro" (LACAN, 1966), mas é preciso que o sujeito se aproprie desse desejo, que o faça seu, para que ele não seja apenas uma repetição do desejo do Outro.

A filosofia nietzschiana da vontade de potência (NIETZSCHE, 1887) pode ser um farol nesse caminho. A filha, ao afirmar sua vontade de potência, sua capacidade de criar e de se superar, pode romper com o ciclo da repetição e construir um futuro que não seja apenas a reprodução do passado, mas a expressão de sua própria singularidade.

5. Considerações Finais:

A relação entre a histeria feminina, a competitividade, a figura do masculino e a dinâmica mãe-filha é um terreno complexo, que revela a riqueza e a ambiguidade das relações humanas. A psicanálise, com sua escuta atenta e singular, busca desvendar os nós inconscientes que atravessam cada história, abrindo caminho para a invenção de novas formas de ser e de se relacionar.

A filha, ao confrontar-se com a sombra da mãe, com o desejo insatisfeito do Outro materno e com a manipulação da figura do masculino, pode encontrar a força para construir sua própria identidade, afirmando sua singularidade e seu desejo, em um movimento que a liberta da repetição e a lança em direção à criação de si mesma. Não se trata de negar a influência materna ou paterna, mas de ressignificá-las, transformando a rivalidade em força criativa e a submissão em liberdade.

Referências Bibliográficas:

*   FREUD, S. (1895) *Estudos sobre a histeria*. Obras completas, ESB, v. II. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
*   LACAN, J. (1966) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: *Escritos*. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 807-842.
*   LACAN, J. (1972-1973) *O Seminário, livro 20: Mais, ainda*. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
*   NIETZSCHE, F. (1887) *Genealogia da moral*. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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