"Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei. Diz a lenda que tudo o que cai nas águas deste rio – folhas, insetos, penas de pássaros – se transforma nas pedras do fundo. Ah, se eu pudesse arrancar meu coração do peito e atirá-lo nas águas correntes, então não haveria dor, nem saudade, nem lembranças."
Paulo Coelho abre seu romance invocando uma lenda que tem fonte nos mitos antigos sobre transformação através da dor. O rio Piedra, palavra que evoca tanto pedra quanto piedade, torna-se metáfora de um processo de análise onde o sofrimento se cristaliza em sabedoria, onde lágrimas se petrificam em memória eterna com lições e potência.Mas há algo profundamente psicanalítico nesta imagem inaugural. O desejo de Pilar de "arrancar o coração do peito" vai se encontrar com o que Freud chamaria de pulsão de morte. E ela não é propriamente, como costumam ver, o desejo de morrer, mas de retornar a um estado anterior à tensão, à excitação, ao conflito. E pode ser, como neste caso, o impulso de desfazer-se da própria sensibilidade quando ela se torna insuportável.
A sensibilidade, essa capacidade de sentir intensamente, revela-se como uma faca de dois gumes na narrativa. Por um lado, é ela que permite a Pilar reconhecer o amor, vibrar com a música, comover-se com a beleza. Por outro, é justamente esta mesma abertura que a torna vulnerável à dor dilacerante da separação, à angústia do abandono, ao medo da perda.
Lacan compreende que esta é a condição fundamental do sujeito: para amar, é preciso aceitar a castração, a falta, a possibilidade da perda. Amor, nesse sentido, é também ter a coragem de entrar em contato com seus recalques vivos e atuantes no inconsciente. O amor não existe sem a sombra da ausência. Pilar, em sua jornada, experimenta o que poderíamos chamar, ensinados por Lacan, de travessia do fantasma, aquele momento em que o sujeito precisa confrontar sua própria vulnerabilidade para poder amar verdadeiramente.
A margem do rio torna-se metáfora de um espaço psíquico onde se decide entre o fechamento defensivo e a abertura corajosa. É Ali-Baba diante da caverna dos tesouros: a senha para entrar, talvez, é aceitar que alguns tesouros custam tudo o que temos.
Há uma cruel ironia no fato de que justamente aqueles que mais profundamente podem amar são, na maioria das vezes, os que mais intensamente sofrem. Essa questão me provocou ainda na primeira dezena de vida: se deixar de ser sensível deixa de sentir? Possivelmente capacidade de se emocionar com um pôr-do-sol é a mesma que permite que uma despedida nos destroce. Não há como separar estas duas faces da sensibilidade. Ela não é um interruptor que podemos ligar apenas para o prazer e desligar para alguma dor.
Winnicott falava da capacidade de concern (a preocupação genuína com o outro) como marca da maturidade emocional. Mas, podemos supor que, esta preocupação, dificilmente evitável, traz consigo a angústia: quem ama teme perder, quem se importa sofre com o sofrimento alheio. Uma das alternativas, entre as várias apostas, seria a elaboração de algum nível de blindagem emocional, o que Reich chamava de "couraça caracterológica", mas chego a pensar que o preço desta proteção em uma medita total pode ser uma espécie de morte em vida.
Pilar descobre que tentar transformar o coração em pedra no fundo do rio é uma fantasia impossível. O coração que sente não pode simplesmente deixar de sentir e ter a crença de um recomeço sem lesões. Pode-se, por um tempo, reprimir, negar, projetar, mas a sensibilidade, uma vez despertada, não retorna ao sono facilmente.
Talvez a elaboração acontece quando Pilar compreende que a alternativa não é entre sentir ou não sentir, mas entre viver a sensibilidade com aposta ou com negação. Entre experimentar a vulnerabilidade como fraqueza ou apostar nela como força.
É aqui que o mito do rio Piedra revela sua questão profunda: as pedras no fundo não são túmulos, mas fundamentos. Talvez, a dor cristalizada torna-se, por meio de algum trabalho, a base sólida sobre a qual busca construir uma vida um tanto mais autêntica. Cada lágrima que se petrifica nas águas do rio não desaparece. Pode transforma-se em alicerce de uma sabedoria que só se conquista atravessando, não evitando, o sofrimento.
Pensamos, geralmente, que a sensibilidade que dói é também a que permite amar apaixonadamente. Quem fecha o coração para não sofrer pode buscar fecha-o também para não amar. Quem se recusa a chorar na margem do rio perde a chance de ver suas lágrimas se transformarem em pedras preciosas no leito da própria dignidade. É fundante se expressar, até mesmo diante de sentimentos desagradáveis, para achar as linhas de outros desenhos para as narrativas que sustentam o lugar subjetivo no qual se justifica uma história própria.
Talvez seja este o apontamento do autor através de seu mito: não se trata de evitar a dor, mas de transformá-la no que for possível naquele momento das suas elaborações. Não se trata de endurecer o coração, mas procurar encontrar alguma força na própria fragilidade. A margem do rio é o lugar onde aprendemos que chorar não é sinal de fraqueza ou derrota, mas pode ser uma aposta na coragem, a coragem de permanecer humano em um mundo que tantas vezes nos convoca à indiferença.
No final, Pilar não atira o coração no rio. Ela o leva consigo, pulsante e vulnerável, como um farol que ilumina o caminho de volta ao amor. Mas talvez aprendeu essa lição entrando em contato com margens que aprendeu evitar ou tentar modificar.
Comentários
Postar um comentário