Na dialética trágica da existência, poucos artistas encarnaram com tanta intensidade o paradoxo dionisíaco-apolíneo quanto Renato Russo em seus derradeiros momentos de vida. O último álbum da Legião Urbana, "A Tempestade ou O Livro dos Dias", lançado em 20 de setembro de 1996, constitui-se como um monumento à finitude consciente, um testamento simbólico que antecipou em apenas 21 dias o desaparecimento físico do poeta. Esta proximidade cronológica entre a criação final e o silêncio definitivo não representa mera coincidência temporal, mas sim a materialização sonora do Real lacaniano que irrompe na linguagem quando o sujeito se encontra face a face com o inominável da morte.
Neste encontro com o Real da finitude, Renato nos oferece não o desespero niilista, mas uma elaboração sublimada do luto antecipado de si mesmo. Como nos ensina Marilena Chaui, "a liberdade não consiste em ter a ilusão de escolher o conteúdo do que nos determina, mas em saber-se determinado e, pelo conhecimento das causas da determinação, transformar a necessidade exterior em liberdade interior". O artista, ao transpor para o registro simbólico sua própria dissolução iminente, realiza este movimento paradoxal: transmuta a sentença de morte que o HIV representava em afirmação vital através da criação estética.
Os sintomas da doença já avançada manifestavam-se no corpo frágil do cantor durante as gravações. Testemunhas relatam que, nos últimos meses, Renato alternava períodos de isolamento profundo e momentos de intensa produtividade criativa, como se a consciência da finitude acelerasse o impulso de dizer o que ainda precisava ser dito. O Real do corpo, marcado pela degradação progressiva que o vírus impunha, contrastava com a potência simbólica das composições que emergiam deste mesmo corpo em declínio. Vemos aqui, materializada, a reflexão de Clarice Lispector: "Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso, nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro".
A faixa "A Via Láctea" revela este paradoxo quando Renato canta: "Quando tudo está perdido, sempre existe um caminho / Quando tudo está perdido, sempre existe uma luz". Não seria esta a tradução poética do conceito de pulsão de vida freudiana que insiste em afirmar-se mesmo diante da destruição inevitável? Ou, ainda, não encontramos aqui confecções com o pensamento de Nietzsche reinterpretado por Clóvis de Barros Filho, quando este nos lembra que "o trágico não é o sofrimento, mas a afirmação da vida apesar do sofrimento"?
Os últimos dias de Renato Russo foram marcados por uma solidão povoada de fantasmas. Internado em seu apartamento na Zona Sul carioca, o artista oscilava entre momentos de lucidez criativa e períodos de sofrimento físico intenso. O corpo que definhava contrastava com a mente que, paradoxalmente, produzia algumas de suas reflexões mais lúcidas sobre a condição humana. Como analisa Antonio Candido, "a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante". O que Renato fez em seus últimos dias foi precisamente isto: transformar sua experiência singular de finitude em uma reflexão universal sobre a existência humana através da arte.
Em "Quando Você Voltar", o artista nos apresenta a fantasia fundamental lacaniana em sua forma mais pura: o objeto de desejo situado no horizonte impossível do futuro, uma promessa de completude que jamais se realizará, mas que, em sua própria impossibilidade, sustenta o desejo de seguir vivendo. Podemos imaginar que Renato sabia, no registro do Real, que não haveria retorno possível, que o "quando" do título era uma ficção necessária, um significante que apontava para o vazio constitutivo do ser.
A morte de Renato Russo em 11 de outubro de 1996 não representou apenas o fim biológico de um corpo, mas a conclusão de um doloroso processo de elaboração simbólica da própria finitude. Como diria Leandro Karnal, "a vida não é o que acontece enquanto estamos ocupados fazendo outros planos; a vida é exatamente o que acontece enquanto fazemos planos". Renato, diferentemente de muitos, teve a lucidez trágica de planejar seu próprio desaparecimento, de orquestrar sua despedida no campo simbólico antes que o Real da morte o silenciasse definitivamente.
O HIV, neste contexto, não foi apenas o agente biológico de destruição, mas o significante que reconfigurou toda a cadeia de significação da existência do artista. Confrontado com a sentença de uma morte anunciada desde o diagnóstico em 1989, Renato transmutou o vírus em impulso criativo, fazendo de sua própria decomposição a matéria-prima de sua arte mais madura. Nos deparamos aqui com algo que lembra o conceito de "escrita de si" proposto por Foucault e desenvolvido por pensadoras brasileiras como Margareth Rago. A escrita-canção pode ser vista, nesse sentido, como tecnologia do eu, como prática de liberdade possível mesmo diante da mais absoluta determinação biológica
Pergunto a vocês, leitores: não seria este o verdadeiro sentido da transmissão? Transformar a experiência mais radicalmente singular, a da própria morte, em um legado que continue a produzir sentidos mesmo após o desaparecimento físico do autor? Quando escutamos hoje "A Tempestade", talvez estamos diante do paradoxo fundamental da arte: a capacidade de transformar a ausência em presença, o silêncio em voz, a morte em vida continuada no campo simbólico.
O drama de Renato Russo pode nos confrontar com nossa própria finitude, mas também nos ensina que, como diria o filósofo Vladimir Safatle, "há momentos em que só nos resta ter a coragem de encarar o impossível". E talvez seja esta a maior lição do último álbum da Legião: a de que, mesmo diante do Real incontornável da morte, ainda nos resta a dignidade ética de simbolizá-la, de inscrevê-la no campo da cultura e, assim, transcendê-la.
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