Esse breve e singelo ensaio oferece uma leitura, que felizmente tem se tornado cada vez mais acessível, sobre a atuação da medicina psiquiátrica e as implicações da patologização na vida das pessoas, invitando à reflexão quanto os caminhos que a psicanálise aposta abrir para um entendimento mais humanizado do sofrimento.
A psicanálise, enquanto prática e discurso, carrega uma forte concentração de crítica ao fenômeno da patologização da vida em um contexto contemporâneo, no qual a medicina psiquiátrica moldou-se em torno de uma lógica industrial. A produção massificada de diagnósticos, frequentemente acompanhada de prescrições imediatas, aponta uma tendência perigosamente redutiva: a transformação da complexidade humana em meros rótulos e categorias diagnósticas.
Como observa Oliveira (2017), a "patologização da experiência humana tem se intensificado, reduzindo a subjetividade a meros termos médicos". Essa tendência não apenas obscurece a riqueza da experiência humana, mas também neutraliza as possibilidades de transformação e crescimento que emergem do sofrimento. Esta análise propõe uma suspensão da ideia de transtorno, buscando compreender os funcionamentos e disfunções que habitam o indivíduo.
A primeira questão a se destacar é a maneira como a medicina psiquiátrica, fundamentada em modelos biomédicos, tende a desumanizar a experiência subjetiva, transformando conflitos internos e desafios existenciais em fórmulas matemáticas. A filósofa e psicanalista Maria Rita Kehl (2011) destaca que "a medicalização do sofrimento humano traz à tona uma lógica que prioriza a intervenção farmacológica em detrimento do entendimento profundo das questões emocionais". Tal processo, em vez de abrir espaço para a vivência do sofrimento e sua valorização, resulta em um enquadramento que prioriza a administração de medicamentos como a solução primária. Contudo, a experiência psicanalítica nos ensina que o que está em pauta são, de fato, funcionamentos que se manifestam em disfunções, revelando a necessidade de se considerar o indivíduo em sua totalidade, incluindo sua história, seus desejos e suas relações.
Neste contexto, a proposta de um tratamento que transcenda a simples administração de medicamentos emerge como uma necessidade premente. A discussão acerca dos laudos diagnósticos deve ser entendida como um ponto de partida e não como um destino final. Esse olhar crítico se aproxima da proposta de Lacan (2003), que argumenta que a análise deve levar o sujeito a confrontar o real que compõe sua história e que não se limita a nomenclaturas. Assim, a busca por um tratamento efetivo deve emergir da conversa entre terapeuta e paciente, no qual o laudo se torna um caminho que desafia as normas e engendra novas possibilidades de ser.
A audácia de se comprometer com o desejo de transformação é fundamental. Enquanto Ferreira (2019) sugere, "as verdadeiras mudanças ocorrem quando o sujeito é convidado a explorar suas possibilidades de escolha, e não apenas a aceitar um diagnóstico como uma sentença". Isso faz com que a prática psicanalítica se torne um espaço de resistência à normalização das experiências de vida. As terapias, éticas e responsáveis, devem se moldar no reconhecimento dos afetos que afetam o sujeito e nas escolhas diárias que reconstroem a identidade. Buscar compreender as nuances das emoções e os mecanismos de defesa é vital para que a pessoa, ao invés de ser apenas uma "pessoa com transtorno", possa se reconhecer em seu desejo, sua criatividade e sua capacidade de produzir sentido a partir da dor.
O movimento em direção à construção de um modelo de cuidado mais inclusivo e abrangente reflete uma crítica à forma como a sociedade contemporânea se aproxima das diferenças. Segundo Campos (2020), "a medicalização acentua a ideia de que o que é patológico precisa ser eliminado ou consertado, desconsiderando o valor intrínseco das experiências que moldam nossa subjetividade". Portanto, a abordagem psicanalítica deve reivindicar seu espaço como um caminho de diálogo e de escuta, onde cada sofrimento é valorizado como uma oportunidade de autoconhecimento e de resiliência.
Em paradigma pós essa reflexões podemos colocar que a prática psicanalítica deve desafiá-la a se desvincular da lógica industrial da medicina psiquiátrica, reavaliando a forma como entendemos o sofrimento. Ao invés de patologizar a vida, é necessário construir uma narrativa em que os funcionamentos e disfunções se tornem aberturas para o tratamento. Mais do que a cura de um transtorno, a ênfase deve recair sobre o desejo de transformação e a audácia de fazer escolhas. Como destacado por Gallo (2018), "tal movimento, que busca a individualidade e a autenticidade, é o que pode verdadeiramente reconstruir quem somos, em meio ao labirinto de afetos que nos afetam".
Referências:
- CAMPOS, J. (2020). A medicalização do sofrimento humano. Rio de Janeiro: Editora Contexto.
- FERREIRA, M. (2019). Escolhas e transformações: o papel do sujeito na terapia. São Paulo: Editora Lacaniana.
- GALLO, R. (2018). Afetos e transformações: a psicanálise além do diagnóstico. Belo Horizonte: Editora UFMG.
- KEHL, M. R. (2011). A medicalização da vida. São Paulo: Boitempo.
- LACAN, J. (2003). O seminário, livro 10: A angustia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
- OLIVEIRA, P. (2017). Patologização e subjetividade: um olhar contemporâneo. Curitiba: Editora Universidade Federal do Paraná.
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