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Os desafios do manejo clínico na estrutura perversa: entre o divã e os paradoxos do desejo

A clínica psicanalítica nos confronta, inevitavelmente, com as complexidades inerentes à estrutura perversa, essa configuração subjetiva que, como ensina a tradição lacaniana, não se constitui meramente como um desvio comportamental, mas como uma organização específica do desejo frente ao Outro. 
Quando nos debruçamos sobre os possíveis manejos clínicos necessários ao trabalho com pessoas que apresentam essa estruturação, deparamo-nos com um território que exige, do analista sobretudo, um preparo de sofisticação técnica que vai muito além das convenções tradicionais do setting analítico. É preciso compreender que, na perversão, o sujeito geralmente busca ocupa uma posição singular diante da castração, não a recalca como na neurose, nem a foraclui como na psicose, mas a denega, construindo um cenário fantasmático onde a saída é se colocar como instrumento de gozo do Outro.
O primeiro manejo fundamental reside na necessidade de não "cair na armadilha" da demanda perversa, que frequentemente se apresenta como um pedido de cumplicidade ou de confirmação do roteiro fantasmático já estabelecido. Como nos alertava o Contardo Calligaris em reflexões sobre a clínica contemporânea, o sujeito perverso muitas vezes busca no analista não um parceiro na descoberta do inconsciente, mas um espectador ou mesmo um cúmplice de sua montagem fantasmática. Aqui, a posição do analista deve ser a de sustentação de uma neutralidade ativa, que não se deixa seduzir pela aparente clareza e organização do discurso perverso, mas que também não se coloca numa posição moralizadora ou interpretativa prematura. É necessário sustentar um tempo de escuta que permita ao sujeito experimentar, talvez pela primeira vez, um Outro que não se oferece como objeto de sua manipulação ou como confirmador de suas certezas sobre o desejo.
A questão do divã, nesse contexto, torna-se particularmente delicada, porém reveladora. É notável observar como pessoas com estrutura perversa frequentemente apresentam uma resistência específica ao dispositivo analítico tradicional, não uma resistência neurótica, marcada pela angústia de castração, mas uma resistência que se manifesta como tentativa de controle do setting e da pessoa do analista. Muitas vezes, esses sujeites preferem permanecer face a face, numa configuração que lhes permite manter a ilusão do controle visual e tentar exercer a capacidade de sedução e manipulação através do olhar e dos gestos. Quando confrontados com a proposta do divã, podem apresentar argumentações racionalizadas sobre sua inadequação, alegando uma espécie de claustrofobia, necessidade de "comunicação visual" ou simplesmente uma "preferência pessoal" que, em última instância, mascara a angústia de perder o controle sobre a situação analítica.
Maria Rita Kehl, em suas elaborações sobre a subjetividade contemporânea, nos oferece lições preciosos sobre como a estrutura perversa se organiza em torno de um saber sobre o desejo do Outro que precisa ser preservado a todo custo. No setting analítico, isso se manifesta como uma tentativa constante de seduzir, impressionar ou mesmo chocar o analista, transformando a sessão num palco onde pode exercer seu domínio. A reação ao divã, nesse sentido, pode ser compreendida como uma manifestação dessa necessidade de controle: deitado, o sujeito perde, ainda que parcialmente, a capacidade de "ler" as reações do analista e de ajustar seu desempenho em tempo real.
O manejo da transferência na estrutura perversa exige, portanto, uma compreensão sensível dos jogos de poder que se estabelecem na relação analítica. Diferentemente da neurose, onde a transferência se organiza em torno da suposição de saber dirigida ao analista, na perversão, frequentemente, observamos uma tentativa de inversão dessa dinâmica: é o sujeito que se oferece como detentor de um saber especial sobre o desejo, sobre a transgressão, sobre os limites e interdições. Essa posição pode e deve ser cuidadosamente manejada pelo analista, que buscará furar o discurso para não recusar totalmente essa oferta (o que levaria a um acting out, que é a encenação que busca uma interpretação, ou mesmo levaria ao abandono do tratamento), nem aceitá-la integralmente (o que significaria compactuar com a estrutura perversa).
Um aspecto indispensável do trabalho clínico com a perversão é a necessidade de sustentar, paradoxalmente, tanto a singularidade do sujeito quanto a universalidade da lei simbólica. Como nos ensina Joel Birman em reflexões sobre a ética da psicanálise, não se trata de "curar" a perversão no sentido moralizante do termo, mas de possibilitar ao sujeito uma relação menos rígida com sua fantasia e, consequentemente, uma abertura maior às possibilidades de laço social. Isso implica um trabalho delicado, e geralmente demorado, de desconstrução das certezas perversas sem, no entanto, deixar o sujeito desamparado frente ao Real da castração.
A questão do tempo na sessão também se mostra possível de analisar no manejo clínico da perversão. O sujeito perverso frequentemente tenta controlar o ritmo da sessão, seja através de narrativas sedutoras que visam prender a atenção do analista, seja através de silêncios calculados ou de provocações diretas. A sessão de tempo variável, princípio técnico lacaniano, adquire aqui uma importância especial: permite ao analista escapar da tentativa de controle temporal do paciente e introduzir um elemento de surpresa e de não-saber que pode ter efeitos estruturantes sobre a posição subjetiva.
É fundamental compreender que a resistência ao divã, tão comum na estrutura perversa, não deve ser interpretada simplesmente como uma recusa caprichosa, mas como uma manifestação da própria organização subjetiva. O divã representa, para essas pessoas, uma ameaça à sua posição de controle e domínio, uma confrontação com a possibilidade de se deparar com o próprio inconsciente sem as defesas habituais. Por isso, o manejo dessa resistência deve ser gradual e cuidadoso, respeitando o tempo necessário para que o sujeito possa experimentar, aos poucos, uma posição menos defensiva na relação com o Outro.
A obra de Suely Rolnik sobre a subjetividade contemporânea aponta vias interessantes para pensar os desafios clínicos da perversão na atualidade. Vivemos em tempos em que certos aspectos da estrutura perversa parecem ter se generalizado socialmente, a busca pelo controle do outro, a instrumentalização das relações, a recusa da alteridade radical. Isso torna o trabalho clínico ainda mais complexo, pois o sujeito perverso encontra no social uma confirmação constante de sua posição subjetiva.
Cabe aqui uma reflexão sobre a própria formação do analista que se propõe a trabalhar com a estrutura perversa. Como nos alerta Christian Dunker em elaborações sobre a clínica psicanalítica brasileira, é necessário que o analista tenha passado por um trabalho pessoal que lhe permita não se deixar seduzir pelas artimanhas perversas nem se colocar numa posição moralista ou salvacionista. A análise pessoal do analista torna-se, nesse contexto, não apenas uma exigência técnica, mas uma necessidade ética fundamental.
O trabalho interpretativo na estrutura perversa exige uma técnica específica que difere significativamente da interpretação neurótica. Enquanto na neurose a interpretação visa revelar o desejo recalcado, na perversão ela deve operar de forma mais sutil, questionando as certezas do sujeito sem atacá-las frontalmente. Trata-se de introduzir pequenas fissuras no sistema de crenças perverso, permitindo que o sujeito vislumbre outras possibilidades de posição subjetiva.
A questão do final de análise na estrutura perversa permanece um tema controverso na literatura psicanalítica. Diferentemente da neurose, onde podemos falar de uma travessia da fantasia fundamental, na perversão o trabalho analítico parece orientar-se mais para uma flexibilização da posição subjetiva e uma abertura maior às possibilidades de laço social. Isso não significa uma "cura" no sentido tradicional, mas uma transformação que permite ao sujeito relacionar-se de forma menos instrumental com o outro.
Pensemos juntos: não seria esse um dos grandes desafios de nosso tempo, aprender a reconhecer e manejar as manifestações perversas que permeiam nossa cultura sem cair nem na complacência nem na condenação moral? A clínica psicanalítica nos ensina que cada estrutura subjetiva traz em si tanto suas limitações quanto suas potencialidades, e nosso papel como analistas é justamente sustentar essa tensão criativa que pode permitir ao sujeito inventar novas formas de estar no mundo.

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