O fim da análise: entre o término e a finalidade, um terno devir cínico e singularizante
A pergunta "Qual o fim de um processo de psicanálise?" surge como um enigma, e ao mesmo tempo um convite a buscar os múltiplos sentidos da palavra "fim", que oscila entre o término e a finalidade, ou seja, entre a conclusão de um percurso e o propósito que o anima. A provocação psicanalítica, ao nos confrontar com essa ambiguidade praticamente antológica, nos lança diante do espelho da reflexão, onde vejo possível de se entrelaçar a psicanálise, o cinismo filosófico, a perspectiva lacaniana e as filosofias do devir.
1. O Fim como Término, encerramento: A Análise "Terminável" e "Interminável" em Freud
Freud, em seu texto seminal "Análise Terminável e Interminável" (1937/1996), aborda a questão do fim da análise sob duas perspectivas aparentemente contraditórias. Por um lado, ele reconhece a possibilidade de um término, de um momento em que o analisando, tendo, no custo de bastante investimento de si, tenha elaborado seus conflitos e portanto fortalecido seu ego. Esse tipinho, bem utópico se a gente generalizar, pode se despedir do analista e seguir "sozinho" seu caminho criando seus próprios pontos sentidos. Esse fim, no entanto, não é um ponto final absoluto, mas sim um marco em um processo contínuo de desenvolvimento psíquico.
Por outro lado, Freud admite a existência de análises que se prolongam indefinidamente, seja pela resistência do analisando, pela complexidade dos conflitos ou pela própria natureza da psique humana, que nunca se esgota em sua busca por sentido. A análise "interminável", nesse sentido, não é um fracasso, mas sim um reconhecimento da incompletude do ser, da impossibilidade de se alcançar uma "cura total, uma resolução definitiva de todos os conflitos.
Mas, afinal, qual seria o critério para definir o fim de uma análise? Seria a ausência de sintomas, a resolução de todos os conflitos, a conquista de uma felicidade plena e duradoura? Ou seria, antes, a capacidade do analisando de lidar com a sua própria angústia, de se responsabilizar por suas escolhas, de construir um sentido singular para a sua existência?
2. O Fim como Finalidade: O Cinismo Filosófico e a Desconstrução das Ilusões em Lacan
A filosofia cínica, com sua crítica radical aos valores estabelecidos, à hipocrisia social e à busca por um sentido transcendente, nos oferece uma lente interessante para analisar a questão do fim da análise. Os cínicos, como Diógenes de Sínope, viviam de forma despojada, desafiando as convenções sociais, buscando a autossuficiência e a liberdade interior.
Lacan, em sua releitura da psicanálise, incorpora elementos do cinismo filosófico, ao propor uma desconstrução das ilusões do eu, das idealizações narcísicas, da busca por um Outro que nos complete. O fim da análise, para Lacan, não é a conquista de uma identidade fixa e estável, mas sim o reconhecimento da nossa falta-a-ser, da nossa incompletude constitutiva.
Em seu seminário sobre a ética da psicanálise (1959-1960/1997), Lacan afirma que o objetivo da análise é levar o sujeito a "atravessar a fantasia", a desconstruir as ilusões que o sustentam, a confrontar-se com o real do seu desejo. Esse processo, longe de ser indolor, exige coragem para renunciar às idealizações, para aceitar a própria castração simbólica, para se haver com a falta que nos constitui.
Mas, não seria essa a verdadeira liberdade? Não seria na capacidade de se desvencilhar das ilusões, de se confrontar com a própria verdade, de assumir a responsabilidade pela própria existência, que reside a verdadeira autonomia?
3. O Fim como Trocadilho: Análises Intermináveis e a Singularização como Eterno Devir
O trocadilho entre o "fim" como término e o "fim" como finalidade nos convida a pensar na análise como um processo que, embora possa ter um ponto de interrupção, nunca se esgota em sua finalidade. A máxima "se singularizar é um exercício de eterno devir" ressoa aqui como um eco, lembrando-nos de que a construção da singularidade é um processo contínuo, uma jornada sem fim.
As filosofias do devir, como a de Heráclito, que afirmava que "tudo flui, nada permanece", nos convidam a abraçar a impermanência, a mudança constante, a transformação como essência da vida. A análise, nesse sentido, não é um processo que visa a fixar o sujeito em uma identidade definitiva, mas sim um convite a se abrir para o novo, a se reinventar, a se tornar cada vez mais si mesmo.
Nietzsche (1882/2012), em "A Gaia Ciência", nos fala da "eterna volta do mesmo", não como uma repetição literal, mas como um convite a viver cada instante com intensidade, a afirmar a vida em sua plenitude, a criar os próprios valores. A análise, como um processo de singularização, nos convida a abraçar essa eterna volta, a nos tornarmos autores da nossa própria história, a construirmos um sentido singular para a nossa existência.
Mas, não seria a própria vida um eterno devir? Não seria na capacidade de se transformar, de se adaptar, de se reinventar, que reside a verdadeira força do ser humano? E a psicanálise, como ferramenta de autoconhecimento e transformação, não seria um convite a abraçar esse devir, a nos tornarmos cada vez mais nós mesmos, em um processo contínuo de singularização?
4. A Articulação entre Psicanálise, Filosofia Helenística e Nietzsche: Um Convite à Liberdade Cínica e Singular
A psicanálise, a filosofia helenística e o pensamento de Nietzsche, embora distintos em suas abordagens, convergem em um ponto crucial: o convite à liberdade, à autonomia, à construção de uma existência autêntica.
A psicanálise, ao nos ajudar a desvendar os labirintos da nossa psique, a elaborar nossos conflitos, a nos libertar das amarras do passado, nos abre o caminho para a construção de um futuro mais livre e autêntico.
A filosofia helenística, com sua ênfase na serenidade, na aceitação do destino, na importância de viver de acordo com a razão e a virtude, nos oferece ferramentas para lidar com a angústia existencial, com a incerteza e a finitude da vida.
Nietzsche, com sua crítica radical à moralidade tradicional, com seu convite à afirmação da vida, à criação dos próprios valores, nos inspira a transcender os limites impostos, a nos tornarmos senhores do nosso próprio destino.
O cinismo, com sua desconstrução das ilusões, com seu convite à autenticidade, à liberdade interior, nos desafia a questionar as convenções sociais, a buscar a nossa própria verdade, a viver de acordo com os nossos próprios princípios.
A articulação entre esses diferentes saberes nos convida a uma jornada de singularização, a um processo de eterno devir, em que a análise, como ferramenta de autoconhecimento e transformação, nos acompanha em nossa busca por uma existência mais plena, mais autêntica, mais livre. Mas, afinal, não seria a própria vida uma jornada em busca de si mesmo? E a psicanálise, como um farol nesse caminho, não seria um convite a nos tornarmos cada vez mais nós mesmos, em um eterno devir cínico e singularizante?
Referências Bibliográficas
* FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável (1937). In: ______. *Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud*. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXIII.
* LACAN, Jacques. *O seminário, livro 7: a ética da psicanálise*. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
* NIETZSCHE, Friedrich. *A gaia ciência*. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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