"Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei. Diz a lenda que tudo o que cai nas águas deste rio – folhas, insetos, penas de pássaros – se transforma nas pedras do fundo. Ah, se eu pudesse arrancar meu coração do peito e atirá-lo nas águas correntes, então não haveria dor, nem saudade, nem lembranças." de Paulo Coelho
À margem do rio da linguagem, o sujeito se constitui. Na visão lacaniana, o corte (la coupure) é um conceito importante não apenas para a clínica de teoria psicanalítica, mas para a própria possibilidade de transformação subjetiva. Diferente das águas do rio Piedra de Paulo Coelho, onde objetos se cristalizam em pedras, o corte lacaniano despetrifica momentaneamente o fluxo do inconsciente, permitindo que algo novo possa emergir.
Corte lacaniano rompe com o encadeamento significante habitual, desestabilizando, com isso, as certezas e abrindo para novas possibilidades. Ele ocorre não apenas no encerramento da sessão, quando finalizamos sem respostas com "até nossa próxima sessão", e também, e principalmente, nas de perguntas e intervenções que colocam em crise o discurso cristalizado."O que você está fazendo com o que está dizendo?" : busca interroga a posição do sujeito em seu próprio discurso.
"Para quem você está falando isso agora?": pode revela destinatários inconscientes do discurso.
"De que lugar você fala?": questiona identificações imaginárias.
"O que há de seu nisso que você repete?": confronta padrões de repetição.
"E você, o que tem a ver com isso?": implica o sujeito onde ele se exclui.
Estas perguntas procuram o estranhamento, interrompem, geralmente, o fluxo automático da narrativa neurótica e pode abrir as fendas no discurso. Ao desestabilizar o que estava posto, o corte permite que o inconsciente apareça e que novas significações sejam criadas. Ele pode doer, mas pode libertar o sujeito de suas repetições sintomáticas.
A natureza do Corte em Lacan
O corte, para Jacques Lacan, não é apenas divisão ou ruptura que ele causa. É operação constitutiva que instaura descontinuidades necessárias à própria estruturação do sujeito. Assim como o personagem de Coelho deseja "arrancar o coração do peito e atirá-lo nas águas correntes", o corte lacaniano opera justamente na tensão entre continuidade e descontinuidade, entre presença e ausência.Lacan coloca que o sujeito é, fundamentalmente, dividido—sujet barré. Esta divisão não é, em si, acidente ou falha a ser corrigida. Então como pode ser? E se ela for a condição de possibilidade para a própria subjetividade.?
O corte manifesta-se em múltiplos níveis:
- Na separação primordial entre o infans e o Outro materno
- Na castração simbólica que insere o sujeito na ordem da cultura
- No ato analítico que intervém na cadeia significante
- Na pontuação que reorganiza o discurso do analisando
Como as águas do rio Piedra que transformam o que nelas cai, o corte lacaniano não apenas divide, mas transmuta. Não é mera subtração, mas pode ser a operação produtiva que possibilita novas significações.
Além do ver diferente: a ética do corte
"Ah, se eu pudesse arrancar meu coração do peito e atirá-lo nas águas correntes, então não haveria dor, nem saudade, nem lembranças." Este desejo da personagem fala do anseio por um corte radical, uma separação do próprio sentir. Lacan nos alertaria: o corte não visa eliminar a dor, mas transformar a relação do sujeito com seu desejo.
O corte lacaniano ultrapassa a dimensão do "ver diferente" para instaurar um fazer diferente. Não se trata apenas da questão de perspectiva interpretativa sobre a realidade, mas, com muito trabalho e repetições, de reconfiguração do próprio laço social e da posição subjetiva.
- Destituição subjetiva: Quando há a queda das identificações imaginárias que sustentam o eu. Fundante de si.
- Travessia do fantasma: Quando há a confronto com o núcleo fantasmático que organiza o desejo e, geralmente, afeta fundamentalmente o funcionamento.
- Ato ético: Quando há a reconhecimento de nova posição frente ao real.
O corte lacaniano, transposto para além do setting analítico, já que ele oferece paradigma de transformação existencial. Não se trata apenas de interpretar diferentemente a vida, mas de vivê-la a partir de outra posição subjetiva. Isto implica:
1. Reconhecer a divisão constitutiva: Assim como o narrador de Coelho que se senta à margem do rio, habitamos fronteira entre o simbólico e o real, entre o sentido e o não-sentido. Aceitar esta divisão não como falha, mas como condição de possibilidade, é primeiro passo para alguma transformação autêntica. O sujeito dividido não é sujeito diminuído, mas potencializado em sua própria fenda.
2. Suportar o vazio da significação: "Então não haveria dor, nem saudade, nem lembranças." O desejo de eliminar o sofrimento através do corte radical aponta para a fantasia de completude. Porém, o corte lacaniano não elimina o vazio, o circunscreve, tornando-o habitável. Transformar a relação com o vazio é mais produtivo que tentar preenchê-lo.
3. Criar a partir da falta: As pedras do fundo do rio Piedra são objetos transformados. Analogamente, o corte lacaniano permite que da falta constitutiva surjam novos significantes, novas formas de gozo, novas modalidades de laço social. A criação não ocorre apesar da falta, mas por causa dela.
4. Assumir o desejo singular: "Arrancar o coração do peito" pode significar tentativa de fugir do próprio desejo. O corte lacaniano, ao contrário, visa permitir que o sujeito se reposicione frente ao seu desejo singular. Não se trata de eliminar o desejo, mas de assumi-lo em sua radicalidade.
Lacan frequentemente comparava o corte à escrita, não qualquer escrita, mas aquela que inscreve o real. "Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei", pode ser este lugar liminar onde o corte pode ocorrer. A margem é fronteira, limite, borda, espaço privilegiado onde diferentes ordens de realidade se encontram e no qual faz sentido o corte pode produzir seus efeitos.
O desejo de "arrancar o coração" para não sentir dor, talvez, fale sobre o medo do encontro com o real. O corte lacaniano, ao contrário, exige coragem. Coragem de atravessar o fantasma, de destituir as identificações confortáveis, de habitar a falta.
Como o personagem que, afinal, não atira seu coração no rio, mas busca carregar a dor transformada, o sujeito que experimenta o corte, mesmo que nem sempre elimina seu sofrimento, pode estabelece nova relação com ele. Não se trata de "não sentir", mas de sentir de alguma forma diferentemente, a partir de posição ética que reconhece a castração (limitação) como condição para o desejo.
O corte, nesse sentido pensado, não é apenas ferramenta teórica clínica, mas práxis da vida que permite ao sujeito, no que consegue alcançar, reescrever sua história a partir da assunção de seu desejo. Como as águas do rio Piedra que transformam folhas em pedras, o corte lacaniano converte o contingente em necessário, o efêmero em estrutural, abrindo caminho para que o sujeito, em sua singular travessia, possa não apenas ver diferentemente, mas ser diferentemente.
Além do conceito do corte, a teoria lacaniana é estruturada em torno de vários conceitos fundamentais que se entrelaçam:
1. Os Três Registros: Real, Simbólico e Imaginário (RSI)
- Real: O domínio do impossível de simbolizar, que resiste à linguagem e representação
- Simbólico: A ordem da linguagem, significantes e estruturas sociais
- Imaginário: O reino das imagens, identificações e relações especulares
2. O Estádio do Espelho
Momento formativo onde o sujeito se identifica com sua imagem especular, estabelecendo as bases da formação do eu (ego) através de uma identificação alienante com uma imagem externa.
3. O Grande Outro
Representa a ordem simbólica, a linguagem e a lei. É o lugar de onde vem o discurso que constitui o sujeito, mas que permanece sempre externo e inatingível.
4. Objeto a (objet petit a)
O objeto causa do desejo, sempre faltante e inalcançável. Representa aquilo que é perdido na constituição do sujeito e que o sujeito busca incessantemente recuperar.
5. Gozo (Jouissance)
Um conceito complexo que ultrapassa o simples prazer, referindo-se a uma satisfação paradoxal que pode incluir sofrimento. Difere do prazer comum por sua relação com o Real e com o excesso.
6. O Inconsciente Estruturado como Linguagem
Ideia central de que o inconsciente não é um reservatório de instintos primitivos, mas é estruturado através de mecanismos linguísticos como a metáfora e a metonímia.
7. Os Quatro Discursos
Estruturas formais que representam diferentes modos de laço social: do mestre, da universidade, da histérica e do analista, permitindo analisar como o poder e o saber circulam nas relações sociais.
8. O Nome-do-Pai
Função simbólica que introduz a lei e permite ao sujeito entrar na ordem simbólica, separando-se do desejo materno.
9. O Significante-Mestre
Significante que organiza a cadeia significante do sujeito, ancorado no Real e constituindo um ponto nodal da identidade.
10. O Sinthoma
Conceito tardio em Lacan que representa o modo singular como cada sujeito organiza seu gozo, permitindo uma amarração dos três registros (RSI).
Estes conceitos não funcionam isoladamente, mas formam uma rede interconectada que permite compreender a constituição do sujeito, sua relação com a linguagem, o desejo e o gozo, formando assim o arcabouço teórico central do pensamento lacaniano.
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