"Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei. Diz a lenda que tudo o que cai nas águas deste rio – folhas, insetos, penas de pássaros – se transforma nas pedras do fundo. Ah, se eu pudesse arrancar meu coração do peito e atirá-lo nas águas correntes, então não haveria dor, nem saudade, nem lembranças." Paulo Coelho abre seu romance invocando uma lenda que ecoa mitos antigos sobre transformação através da dor. O rio Piedra, palavra que evoca tanto pedra quanto piedade, torna-se metáfora de um processo alquímico onde o sofrimento se cristaliza em sabedoria, onde lágrimas se petrificam em memória eterna. É o mito da metamorfose dolorosa, reminiscente de Dafne transformando-se em loureiro para escapar de Apolo, ou de Níobe convertida em rocha pelo excesso de lamento. Mas há algo profundamente psicanalítico nesta imagem inaugural. O desejo de Pilar de "arrancar o coração do peito" ressoa com o que Freud chamaria de pulsão de morte – não propriamente o desejo de morrer, m...
Introdução A relação entre o pensamento nietzschiano e a psicanálise constitui um dos encontros mais profícuos e complexos da história das ideias. Friedrich Nietzsche, que proclamou ser "o primeiro psicólogo da Europa" (Nietzsche, 1888/2008, p. 45), antecipou muitas das descobertas freudianas sobre o inconsciente, a sexualidade e os mecanismos de defesa do psiquismo. Freud, por sua vez, reconheceu explicitamente esta dívida, afirmando que Nietzsche possuía "insights sobre si mesmo que não foram ultrapassados por ninguém" (Freud, 1925/2011, p. 34). Contudo, a apropriação psicanalítica do pensamento nietzschiano não se limitou a uma confirmação de intuições filosóficas; ela operou transformações conceituais que simultaneamente honraram e subverteram o legado nietzschiano. Este ensaio explora as convergências e divergências entre ambos os pensadores, demonstrando como a psicanálise construiu um edifício teórico que, embora devedor da filosofia nietzschiana, criou n...