As marcas primordiais inscritas no inconsciente constituem um dos temas mais instigantes da psicanálise desde sua concepção freudiana. Este ensaio propõe uma reflexão sobre como as inscrições primárias no aparelho psíquico determinam padrões de repetição que, paradoxalmente, podem servir não como prisões existenciais, mas como plataformas para novas possibilidades de ser. Conforme afirmou Freud (1920/2010, p. 179), "o que permanece incompreendido retorna; como uma alma penada, não descansa até encontrar resolução e libertação". A compulsão à repetição, longe de ser apenas um mecanismo patológico, revela-se como condição inerente ao psiquismo humano, convidando-nos a repensar o próprio objetivo da psicanálise não como cura definitiva, mas como transformação possível da relação do sujeito com suas determinações inconscientes.
As Inscrições Primordiais no Aparelho Psíquico Freudiano
Para Freud, o aparelho psíquico conserva marcas permanentes das primeiras experiências, especialmente aquelas de natureza traumática. Em "Além do Princípio do Prazer", ele observa que "a vida psíquica de um ser humano consiste em um sistema que foi estabelecido na tenra infância e que, desde então, não se modificou em seus aspectos fundamentais" (Freud, 1920/2010, p. 182). Estas inscrições não são acessíveis à consciência em sua forma original, manifestando-se através de derivados que emergem na repetição sintomática.
A compulsão à repetição demonstra que o aparelho psíquico busca incessantemente elaborar aquilo que permaneceu como excesso não simbolizado. Como afirma Freud (1914/2010), "o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o. Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo".
Lacan e o Real que Insiste
Lacan aprofunda a compreensão freudiana ao articular que a repetição está intimamente ligada ao registro do Real – aquilo que escapa à simbolização. "O Real", afirma Lacan (1964/1998, p. 55), "é o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que cogita, não o encontra". A repetição lacaniana não é simples reprodução do mesmo, mas a insistência de um encontro sempre faltoso com o Real.
Para Lacan, o processo analítico não visa eliminar a repetição, mas produzir um deslocamento na posição do sujeito frente ao que se repete. Como ele enfatiza em seu Seminário 11, "a transferência é a atualização da realidade do inconsciente" (Lacan, 1964/1998, p. 139), permitindo que as marcas primárias possam ser reinscritas na cadeia significante.
Espinosa e a Potência dos Afetos
A filosofia de Espinosa oferece uma perspectiva complementar ao pensamento psicanalítico sobre a repetição. Em sua "Ética", Espinosa (1677/2009, p. 163) propõe que "um afeto não pode ser coibido nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser coibido". Esta proposição encontra ressonância na ideia de que a repetição não deve ser negada, mas transformada através de novas experiências afetivas.
Espinosa nos convida a pensar que o conhecimento das determinações não é suficiente para a transformação; é necessário que este conhecimento produza afetos suficientemente poderosos para reconfigurar a economia psíquica. Como escreve o filósofo, "quanto mais conhecemos as coisas singulares, tanto mais conhecemos a Deus" (Espinosa, 1677/2009, p. 87), sugerindo que o aprofundamento na compreensão de nossas determinações singulares amplia nossa potência de agir.
Nietzsche e o Eterno Retorno como Afirmação
O pensamento nietzschiano sobre o eterno retorno oferece uma perspectiva radical sobre a repetição. Para Nietzsche, a repetição não é meramente um destino a ser aceito, mas uma oportunidade para a afirmação da vida em sua totalidade. Em "A Gaia Ciência", ele desafia: "E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes'... Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: 'Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!'" (Nietzsche, 1882/2001, p. 230).
A visão nietzschiana sugere que a verdadeira transformação ocorre não na negação da repetição, mas na mudança de atitude perante ela – da resistência ressentida à afirmação criativa. Como destaca Deleuze (1962/2018, p. 73) em sua leitura de Nietzsche, "o eterno retorno é a repetição, mas é a repetição que seleciona, a repetição que salva".
A Narrativa como Espaço de Reinvenção
A intersecção destes pensamentos nos conduz a compreender o processo psicanalítico como uma prática que reconhece a inevitabilidade da repetição, mas aposta na possibilidade de sua ressignificação através da narrativa. O sujeito que se narra está simultaneamente determinado por suas marcas primordiais e engajado na possibilidade de reescrevê-las.
Como observa Ricœur (1983/2010, p. 124), "narrar é já refletir sobre os acontecimentos narrados". A narrativa não é mera descrição de eventos, mas um processo ativo de configuração e reconfiguração do sentido. Na clínica psicanalítica, o sujeito encontra um espaço privilegiado para elaborar suas repetições, não para eliminá-las, mas para fazê-las fonte de novas possibilidades existenciais.
Considerações provisórias sobre o tema: Da Repetição à Diferença
A psicanálise, vista através das lentes de Freud, Lacan, Espinosa e Nietzsche, revela-se como uma prática que não promete a libertação das determinações inconscientes, mas oferece a possibilidade de uma relação transformada com elas. Como sintetizou Deleuze (1968/2018, p. 36), "não é o mesmo que retorna, não é o semelhante que retorna, mas o Mesmo é o retorno do que retorna, isto é, do Diferente".
O processo analítico, portanto, não visa eliminar a repetição – tarefa impossível dado o caráter constitutivo das marcas primárias no psiquismo – mas permitir que da repetição emerja a diferença. Através da elaboração narrativa, o sujeito pode transformar suas determinações em pontos de partida para novas experiências, fazendo da repetição não um destino selado, mas um texto aberto a novas inscrições.
Como nos lembra Lacan (1954/1998, p. 318), "o inconsciente é o discurso do Outro", mas a análise oferece a possibilidade de que o sujeito, ao reconhecer-se neste discurso, possa nele inscrever sua singularidade. A repetição torna-se, assim, não o fracasso da liberdade, mas seu campo de possibilidade – não o fim da jornada, mas seu permanente recomeço.
Referências:
Deleuze, G. (2018). Diferença e repetição. (L. Orlandi & R. Machado, Trad.). Paz & Terra. (Obra original publicada em 1968)
Espinosa, B. (2009). Ética. (T. Tadeu, Trad.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677)
Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In Obras completas (Vol. 14). Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1920)
Lacan, J. (1998). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1964)
Nietzsche, F. (2001). A gaia ciência. (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1882)
Ricœur, P. (2010). Tempo e narrativa (Vol. 1). Martins Fontes. (Obra original publicada em 1983)
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