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A Serpente Engolida: o desafio nietzschiano da (trans)formação




A metáfora da serpente em "Assim Falava Zaratustra" não é mero adorno literário, mas uma provocação visceral que desafia nossos mais profundos pressupostos. Encontramos esta imagem perturbadora na seção "Da Visão e do Enigma", onde Nietzsche nos apresenta:

> "Vi um jovem pastor contorcendo-se, sufocando, estremecendo, com o rosto desfigurado, de cuja boca pendia uma pesada serpente negra."

Não é chocante como esta imagem nos captura imediatamente pelo horror? A serpente — negra, pesada, invasiva — penetra no corpo enquanto o pastor dormia, simbolizando nossa vulnerabilidade fundamental:

> "Porventura, havia eu visto jamais tanto asco e pálido horror num semblante? Ele devia estar dormindo quando a serpente lhe entrou na garganta — onde se agarrou mordendo."

Observem como Zaratustra tenta, em vão, resolver o problema pela via convencional:

> "Minha mão puxou a serpente, puxou e tornou a puxar: — em vão! Não consegui arrancá-la da garganta."

Mas o que acontece quando as soluções tradicionais falham? Quando nenhuma ajuda externa é suficiente? É precisamente neste momento que surge o imperativo nietzschiano:

> "'Corta-lhe a cabeça! Morde!' — foi o que gritou de dentro de mim; meu horror, meu ódio, meu asco, minha compaixão, todo o meu bem e o meu mal gritaram de dentro de mim numa só exclamação."

E o que vemos depois desta ação decisiva?

> "Não mais pastor, não mais homem — um ser transformado, iluminado, que ria! Nunca, na terra, um homem riu como ele ria!"


Não estamos todos, em algum momento, como este pastor? Adormecidos em nossa existência cotidiana, quando subitamente somos invadidos por uma verdade insuportável que ameaça nos sufocar? 

A serpente — não é ela o que Lacan chamaria de "Real"? Aquilo que resiste à simbolização, que irrompe em nossa realidade organizada e a desestabiliza completamente? O Real lacaniano não é precisamente esta serpente que não pode ser integrada à nossa cadeia significante, que não podemos "engolir" simbolicamente?

E como diria Sartre, não estamos todos condenados à liberdade de decidir como responder a esta serpente? A angústia do pastor não é apenas pelo sufocamento físico, mas pela responsabilidade inescapável de agir. Não seria a tentativa de Zaratustra de remover a serpente uma forma de "má-fé" sartriana — a ilusão de que podemos escapar da responsabilidade de nossa própria salvação?


O existencialismo nietzschiano encontra eco profundo no pensamento sartriano: ambos nos confrontam com a ausência de determinismos que possam aliviar o peso de nossas escolhas. A mordida na serpente não é apenas um ato de vontade, mas o que Sartre chamaria de "projeto original" — um ato fundador que define o ser.

"A existência precede a essência", proclama Sartre. Não é precisamente isto que vemos no pastor transformado? Ele não descobre quem era, mas torna-se algo novo através de seu ato decisivo. Sua essência não precede sua escolha — é criada por ela.

E o que diria Espinosa sobre esta cena? Para ele, a serpente representaria um afeto passivo, uma paixão que diminui nossa potência de agir (conatus). O pastor, inicialmente dominado pelo medo e horror (afetos passivos), transforma-se quando age decisivamente. Não é este o movimento que Espinosa descreve da servidão passional à liberdade ativa? Da passividade que nos diminui à atividade que aumenta nossa potência?

Para Espinosa, compreender adequadamente a causa de nossos afetos é o caminho para a liberdade. Quando o pastor morde a serpente, não está ele adquirindo um conhecimento adequado de sua situação, deixando de ser efeito para tornar-se causa?


Do ponto de vista psicanalítico, a leitura se enriquece quando incorporamos Lacan. A serpente que invade enquanto dormimos não seria o que Lacan chama de "encontro com o Real"? Aquilo que escapa à simbolização, que não pode ser assimilado pela linguagem?

Para Lacan, o sujeito é constituído por uma falta fundamental — não seria a serpente também uma manifestação desta falta constitutiva que retorna para assombrar o sujeito? E o ato de mordê-la não seria análogo ao que Lacan chama de "travessia do fantasma" — o confronto direto com o Real que reorganiza toda a economia psíquica do sujeito?

Observem o riso final do pastor. Não seria este o riso do sujeito que completou sua "travessia", que enfrentou o núcleo traumático de sua existência e, em vez de ser destruído por ele, encontrou uma nova posição subjetiva? Como diria Lacan: "A única coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido em seu desejo." O pastor não cede — ele assume seu desejo radical de libertação.

Esta transformação nos lembra também o conceito espinosista de beatitude — o estado de quem compreendeu a necessidade de todas as coisas e encontrou a liberdade nesta compreensão. O pastor que ri não está separado da serpente por um dualismo cartesiano — ele compreendeu sua unidade substancial com ela, como diria Espinosa.


Sartre nos ensina que somos radicalmente livres, mas que esta liberdade é um fardo que frequentemente tentamos evitar. Quantos de nós, como o pastor, preferimos sufocamentos lentos a enfrentamentos decisivos? Não seria mais fácil viver na "má-fé" — aquela autoilusão que nos permite evitar a angústia da escolha?

Lacan nos mostra que o desejo nunca é simplesmente nosso — é sempre o desejo do Outro. A voz que grita dentro de Zaratustra ("Morde! Morde!") não seria este Outro lacaniano que articula um desejo que o próprio sujeito não consegue formular? E o ato de morder não seria assumir este desejo como próprio?

Espinosa, por sua vez, nos convida a pensar na transformação do pastor como um aumento de potência. O conatus — este esforço para perseverar no ser — manifesta-se em sua forma mais pura quando o pastor decide agir. De afetado passivamente (triste, na terminologia espinosista), ele passa a ser causa adequada de seus próprios afetos (alegre).

A metáfora da serpente permanece viva precisamente porque continua a nos desafiar em múltiplos níveis filosóficos. Não é uma lição que aprendemos uma vez e seguimos em frente. É um confronto contínuo.

Como diria Sartre: estamos condenados à liberdade de enfrentar nossas serpentes. Como advertiria Lacan: o Real sempre retornará para desestabilizar nossas construções simbólicas. Como ensinaria Espinosa: nossa liberdade consiste em compreender adequadamente o que nos afeta e transformar paixões em ações.

Quais são as serpentes que sufocam você hoje? O conformismo? O ressentimento? O medo da morte? A falta de sentido? E mais importante: quando você decidirá mordê-las?

Estamos todos, como diria Sartre, em "situação" — limitados por circunstâncias que não escolhemos. Mas dentro desta situação, somos livres para escolher como responder. A serpente nos coloca em situação, mas a mordida é nossa escolha livre.

Estamos todos, como indicaria Lacan, atravessados por um desejo que não compreendemos completamente. Mas podemos escolher não ceder neste desejo, confrontando o Real que nos assombra.

Estamos todos, como ensinaria Espinosa, sujeitos a afetos que diminuem nossa potência. Mas podemos transformar estes afetos através do conhecimento adequado, aumentando nossa potência de agir.

A serpente espera. A decisão é sua. Morderá ou continuará sufocando? Assumirá sua liberdade ou viverá na má-fé? Atravessará seu fantasma ou recuará diante do Real? Aumentará sua potência ou permanecerá na servidão das paixões?

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