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POÉTICAS DA DISSIDÊNCIA: O LIRISMO LGBTQIAPN+ NO CENTRO-OESTE, UMA BREVE APRECIAÇÃO

POÉTICAS DA DISSIDÊNCIA: O LIRISMO LGBTQIAPN+ NO CENTRO-OESTE, UMA BREVE APRECIAÇÃO 

Por Ítalo Alessandro Lemes Silva


Introdução: 

O 9º Festival Internacional de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás, realizado entre 12 e 19 de junho de 2024, foi um espaço significativo para a discussão e valorização da produção literária LGBTQIAPN+ no Brasil, especialmente no contexto do Centro-Oeste. A mesa redonda intitulada "Poéticas da Dissidência" destacou a importância da literatura como uma ferramenta de resistência e politização, reunindo vozes que, por muito tempo, foram marginalizadas. Conduzida pelo psicanalista, filósofo, pedagogo e historiador Ítalo Silva, a mesa contou com a participação das poetisas goianas Beta(m)xreis e Lavínia Mendes, cujas experiências pessoais e profissionais oferecem uma rica perspectiva sobre a interseccionalidade das identidades de gênero e sexualidade. Este ensaio acadêmico busca explorar as discussões apresentadas na mesa, à luz das teorias de Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Karl Marx e Theodor Adorno, analisando como o lirismo LGBTQIAPN+ se configura como uma ferramenta de resistência e politização em um contexto social de marginalização.


  O lirismo LGBTQIAPN+ contemporâneo, conforme discutido por Beta(m)xreis e Lavínia Mendes, emerge como uma resposta à opressão e à invisibilidade que este grupo enfrenta. A literatura se transforma em um espaço de significação e reivindicação, onde as palavras têm o poder de contestar normas sociais e desafiar as estruturas de poder que historicamente marginalizaram essas identidades. Nietzsche, em "Assim Falou Zaratustra", enfatiza a vontade de poder como força motriz da arte, sugerindo que a expressão poética pode ser um ato de afirmação e resistência (Nietzsche, 1883). 

  Este desejo de afirmar a própria existência se reflete na obra das autoras, que utilizam suas experiências para desafiar narrativas hegemônicas e criar um espaço onde suas vozes possam ser ouvidas e valorizadas. A literatura, portanto, não é apenas um reflexo da realidade, mas um meio de transformá-la, permitindo que as experiências LGBTQIAPN+ sejam reconhecidas e respeitadas.

  Ítalo Silva ressaltou na mesa redonda que a diversidade de experiências e vozes dentro da comunidade LGBTQIAPN+ é fundamental para a construção de um panorama literário mais inclusivo. Ele argumentou que "sem entusiasmo, não há movimento", sublinhando que a paixão e a motivação são essenciais para o ativismo. Essa perspectiva está alinhada com a visão de Marx, que defendia a necessidade de uma consciência coletiva para a transformação social. A literatura, ao dar voz a essas experiências, serve como um veículo para a conscientização e a organização política, permitindo que as narrativas individuais se conectem a uma luta maior por direitos e reconhecimento (Marx, 1844). Assim, a poética da dissidência não apenas documenta as vivências de indivíduos, mas também se torna um chamado à ação, incentivando a comunidade a se mobilizar em busca de justiça e igualdade.

  As intervenções de Beta(m)xreis refletem um forte vínculo entre sua identidade de gênero e sua produção literária, evidenciando como a literatura pode servir como um meio de expressão e afirmação pessoal. A poetisa compartilhou suas inseguranças preexistentes e como essas experiências moldaram sua escrita, revelando a profundidade de suas vivências e a complexidade do processo de autoidentificação. A autoidentificação, conforme definida por psicólogos e sociólogos, é o processo pelo qual um indivíduo reconhece e define sua própria identidade, levando em consideração fatores como gênero, sexualidade, raça e classe. Essa relação entre criatividade e expressão de conflitos pessoais ecoa a análise freudiana, onde a arte se apresenta como uma forma de sublimação dos desejos e tensões (Freud, 1910). Freud argumenta que a sublimação é um mecanismo de defesa que permite que os indivíduos canalizem suas emoções e conflitos internos em formas criativas, como a literatura, a música ou as artes visuais. Para Beta(m)xreis, essa sublimação se torna um caminho não apenas de expressão, mas de transformação, onde suas inseguranças se convertem em arte.

  A transição de gênero apresentada por Beta(m)xreis não é apenas um caminho de afirmação pessoal, mas uma jornada que dialoga com as complexidades da identidade em um contexto mais amplo. A transição de gênero, que envolve a mudança de expressão ou identidade de gênero, é frequentemente acompanhada de desafios sociais e emocionais significativos. A pandemia, como um momento de crise global, intensificou essa busca por autoidentificação e aceitação, levando a poetisa a refletir sobre a vida e a morte, e a se reconhecer em sua totalidade. Esse período de isolamento e incerteza forçou muitos a confrontar suas identidades de maneira mais profunda, e Beta(m)xreis não é exceção. Sua escrita, portanto, se torna um testemunho da luta pela aceitação e pela busca de um espaço onde possa ser plenamente ela mesma.

Assim como a arte, a literatura para Beta(m)xreis é uma prática de resistência que busca descolonizar a narrativa artisticamente. O conceito de descolonização da narrativa refere-se ao processo de desafiar e reverter as histórias dominantes que marginalizam certas vozes e experiências. Utilizando referências variadas que vão desde a cultura pop, como o funk, até influências filosóficas, Beta(m)xreis cria um espaço literário que reflete a diversidade de sua identidade e de sua comunidade. Essa diversidade de referências se alinha com a crítica de Adorno sobre a necessidade de que a arte mantenha seu potencial crítico, resistindo à coesão da cultura de massa (Adorno, 1947). Adorno argumenta que a arte deve ser um espaço de crítica e reflexão, desafiando as normas estabelecidas e promovendo uma visão mais complexa da realidade. A poetisa enfatizou a importância das leis de incentivo à cultura, que permitem que autores independentes possam produzir e financiar suas obras, essencial para a diversidade de vozes na literatura. Essas leis são fundamentais para garantir que escritores de diferentes origens e experiências possam ter acesso aos recursos necessários para compartilhar suas histórias.

  Através de sua escrita, Beta(m)xreis não apenas expressa suas experiências, mas também contribui para a construção de um espaço literário mais plural e representativo. Sua obra desafia as narrativas tradicionais e abre espaço para que outras vozes marginalizadas sejam ouvidas. Essa prática não é apenas um ato de resistência individual, mas um convite à coletividade, onde a literatura se torna um meio de promover a empatia e a compreensão entre diferentes grupos sociais. Assim, a produção literária de Beta(m)xreis se insere em um movimento mais amplo de luta por reconhecimento e igualdade, onde a arte e a literatura se tornam ferramentas poderosas para a transformação social.

  A interseccionalidade, um conceito desenvolvido pela jurista Kimberlé Crenshaw (2019), refere-se à maneira como diferentes formas de opressão e discriminação se sobrepõem e interagem, criando experiências únicas de marginalização para indivíduos que pertencem a múltiplos grupos sociais. Esse tema foi recorrente nas falas de Lavínia Mendes, que abordou o desafio de ser uma mulher lésbica negra da periferia, ressaltando a necessidade de representatividade e a urgência de expressar experiências de vida através da literatura. Lavínia destacou a escassez de literatura voltada para mulheres lésbicas, um vazio que a motivou a escrever e publicar suas próprias experiências. Essa falta de representação não é apenas uma questão de ausência de vozes, mas uma questão de poder e visibilidade, onde as narrativas de mulheres lésbicas, especialmente aquelas que também enfrentam discriminação racial e socioeconômica, são frequentemente silenciadas.

  Esse ato de criar, segundo Theodor Adorno, é uma forma de resistência não apenas às opressões, mas também uma celebração da vida (Adorno, 1947). A literatura, nesse contexto, torna-se um espaço de afirmação e resistência, onde as autoras podem desafiar as normas sociais e culturais que tentam limitar suas identidades. Ao compartilhar suas histórias, Lavínia não apenas preenche um vazio na literatura, mas também oferece um testemunho poderoso da luta e da resiliência de mulheres que vivem à margem da sociedade. Essa prática de escrita se transforma em um ato político, onde a expressão pessoal se entrelaça com a luta coletiva por reconhecimento e igualdade.

  A escritora refletiu sobre como a literatura pode servir como um espaço de conexão e solidariedade entre indivíduos que compartilham experiências semelhantes. Essa ideia de solidariedade é fundamental, pois reconhece que a luta por reconhecimento e igualdade é uma responsabilidade coletiva. A interseccionalidade, ao destacar as múltiplas dimensões da identidade, nos convida a entender que as opressões não são isoladas, mas interconectadas. Assim, a literatura se torna um meio de construir pontes entre diferentes grupos marginalizados, promovendo um diálogo que é essencial para a construção de um movimento social mais coeso e inclusivo.

  Além disso, a obra de Lavínia Mendes enfatiza a importância de se reconhecer a diversidade dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+. A luta por direitos não deve ser uma luta homogênea, mas sim uma celebração das diferenças que existem dentro do grupo. Essa perspectiva é vital para garantir que todas as vozes sejam ouvidas e que as necessidades específicas de cada subgrupo sejam atendidas. A interseccionalidade, assim, se torna uma ferramenta não apenas para a resistência, mas também para a construção de um movimento mais inclusivo e representativo, que reconhece e valoriza a pluralidade das experiências humanas.

  A escritura de Lavínia Mendes não apenas reflete uma conexão profunda com questões de raça e classe, mas também revela a complexidade das intersecções que moldam a experiência de ser uma mulher lésbica negra da periferia. Essa intersecção de identidades é crucial para entender a luta coletiva contra a invisibilidade que muitos indivíduos enfrentam em suas vidas cotidianas. Lavínia enfatiza que a literatura é uma ferramenta essencial para discutir e confrontar a homofobia, além de outros desafios enfrentados por corpos LGBTQIAPN+. Ao articular suas experiências pessoais e coletivas, ela não apenas narra sua própria história, mas também dá voz a uma gama de vivências que frequentemente são silenciadas ou ignoradas pela sociedade.

  Nesse sentido, suas palavras se transformam em um chamado à ação e à solidariedade, ecoando a crítica marxista à necessidade de aliança entre grupos marginalizados para alcançar mudanças significativas (Marx, 1844). A interseccionalidade, portanto, não é apenas uma questão de identidade, mas uma estratégia de resistência que busca unir diferentes lutas em prol de um objetivo comum: a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Essa abordagem crítica é fundamental, pois reconhece que as opressões não operam de forma isolada; elas se entrelaçam e se reforçam mutuamente, criando um sistema complexo de desigualdade que deve ser desmantelado de maneira holística.

  A literatura, nesse contexto, torna-se um espaço de resistência onde as vozes marginalizadas podem se encontrar e se fortalecer. Lavínia, ao abordar questões de raça, classe e sexualidade, não apenas desafia as narrativas dominantes, mas também propõe uma nova forma de ver e entender a sociedade. Sua escrita serve como um espelho que reflete as realidades duras enfrentadas por muitos, ao mesmo tempo em que oferece uma visão de esperança e possibilidade de mudança. A interseccionalidade, portanto, não é apenas uma teoria acadêmica, mas uma prática viva que busca construir pontes entre diferentes movimentos sociais, promovendo uma solidariedade que é essencial para a luta por justiça.

  Além disso, a obra de Lavínia Mendes destaca a importância de se reconhecer a diversidade dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+. A luta por direitos não deve ser uma luta homogênea, mas sim uma celebração das diferenças que existem dentro do grupo. Essa perspectiva é vital para garantir que todas as vozes sejam ouvidas e que as necessidades específicas de cada subgrupo sejam atendidas. A interseccionalidade, assim, se torna uma ferramenta não apenas para a resistência, mas também para a construção de um movimento mais inclusivo e representativo, que reconhece e valoriza a pluralidade das experiências humanas.

  Portanto, a escritura de Lavínia Mendes não é apenas um ato de expressão pessoal, mas um convite à reflexão e à ação coletiva. Ao articular as complexidades de sua identidade e as lutas que enfrenta, ela nos lembra que a literatura pode ser um poderoso agente de mudança social, capaz de desafiar as estruturas de opressão e promover uma visão mais justa e igualitária para todos.


Considerações finais:

  A mesa "Poéticas da Dissidência" no 9º Festival Internacional de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás destacou de maneira contundente como o lirismo LGBTQIAPN+ se configura como uma poderosa ferramenta de politização e resistência. Através das vozes de Beta(m)xreis e Lavínia Mendes, a poesia se revela não apenas como uma forma de expressão artística, mas como um meio de afirmação identitária em uma sociedade que frequentemente marginaliza e nega a diversidade. Essa afirmação é crucial, pois a arte, especialmente a literatura, tem o poder de desafiar narrativas hegemônicas e criar espaços onde identidades diversas possam ser reconhecidas e celebradas. 

O evento também sublinha a importância da inclusão e visibilidade na arte contemporânea, enfatizando a necessidade de escutar vozes que desafiam normas sociais e culturais. A presença de artistas LGBTQIAPN+ em plataformas como o festival não apenas enriquece o panorama artístico, mas também serve como um ato de resistência contra a invisibilidade e a opressão. A celebração da complexidade das identidades, portanto, não é apenas um gesto simbólico, mas uma ação política que busca transformar a percepção pública e promover uma maior aceitação da diversidade.

  À medida que avançamos na luta por direitos e reconhecimento, a poética da dissidência emerge como um farol de esperança, sinalizando que a literatura e a arte têm o potencial de criar um futuro onde as classificações de gênero e sexualidade se tornem obsoletas. Essa visão utópica é fundamental, pois sugere que a arte pode ser um catalisador para a mudança social, promovendo uma compreensão mais profunda e empática das experiências humanas. A literatura, portanto, não deve ser vista apenas como um reflexo da realidade, mas como um meio ativo de transformá-la, permitindo que as experiências LGBTQIAPN+ sejam não apenas reconhecidas, mas também respeitadas.

  Além disso, a luta por igualdade e justiça deve continuar a ser uma prioridade em nossa sociedade, e a arte desempenha um papel vital nesse processo. Ao dar voz a narrativas que muitas vezes são silenciadas, a literatura e a poesia se tornam instrumentos de conscientização e mobilização, incentivando a sociedade a refletir sobre suas próprias normas e preconceitos. Assim, a poética da dissidência não é apenas uma forma de resistência, mas uma afirmação da dignidade humana, que busca construir um mundo mais justo e inclusivo para todos.



Referências:

ADORNO, T. W. (1947). Filosofia da nova música. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.


CRENSHAW, Kimberle. 'Diferença' através da interseccionalidade 1. Em: Dalit Feminist Theory . Routledge Índia, 2019. p. 139-149.


FREUD, S. (1910). A interpretação dos sonhos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.


MARX, K. (1844). A ideologia alemã. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.


NIETZSCHE, F. (1883). Assim falou Zaratustra. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.




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