"Somos condenados a ser livres; porque, uma vez lançados no mundo, somos responsáveis por tudo o que fazemos." Esta afirmação de Jean-Paul Sartre enfatiza o ponto central do existencialismo, onde a liberdade não é meramente uma 'bênção', mas uma demanda inescapável para a criação de nós mesmos. Na ausência de uma identidade configurada ao nascimento, somos impelidos a construir a nossa através de um contínuo processo identificatório. Contudo, conforme Jacques Lacan explora, essa criação de identidade está intrinsecamente vinculada ao desejo do Outro, aquele que nos mira desde o espelho social.
A noção de ter que criar nossa essência remonta à mitologia grega, onde Prometeu e Epimeteu, na tarefa de formar os seres vivos, deixam os humanos sem um protótipo definido. Em um ato de insubordinação e generosidade, Prometeu oferece o fogo dos deuses à humanidade, simbolicamente conferindo a capacidade de moldar seu próprio destino. Este mito serve de metáfora para a condição humana: desprovidos de uma essência inata, somos desafiados a buscar, incessantemente, um sentido e um propósito para nossas vidas.
Friedrich Nietzsche complica essa busca ao declarar que "Deus está morto", subvertendo a ideia de que há um sentido absoluto ao qual podemos nos agarrar. A morte simbólica de Deus representa a erosão de certezas transcendentais e objetiva-nos a avaliar por nós mesmos nosso espaço no universo. Este cenário, segundo Lacan, transforma a procura por sentido em um exercício de desejo: um desejo que tenta ser saciado por meio do Outro.
O Outro, na visão lacaniana, é a tela sobre a qual projetamos nossas aspirações e carências. No entanto, essa tela frequentemente reflete uma imagem distorcida, a de manter aberta a fenda de nossa busca por completude, busca essa impossível, porém motor de nós... O espelho do Outro é sempre falho em entregar validação absoluta, expondo nossa contínua falta interna.
Nietzsche, ainda, propõe que "a vida é uma obra de arte", sugerindo que na ausência de sentido absoluto, a criação de uma vida significativa repousa na capacidade do indivíduo de transformar sua existência numa arte pessoal e única. O ato criativo não se restringe à mera sobrevivência ou conformidade, mas na originalidade que emerge do "um a um" lacaniano, a singular relação de cada sujeito com sua falta e suas potencialidades.
Desta perspectiva, embora o vazio existencial inicial interfira como um peso, ele se converte em uma tela potencialmente rica em possibilidades. A liberdade que Sartre descreve como uma condenação pode, paradoxalmente, ser vista como o solo fértil onde crescemos e construímos significados pessoais. Não mais atolados na tarefa sisífica de encontrar uma essência imposta, estamos perante a possibilidade revolucionária de tornar nossas vidas expressões singulares e valiosas.
Assim, a busca por sentido em um universo vazio de essência, dada por si ou pelo alto dos Céus, não é apenas uma tarefa inacabada, mas a própria tarefa em que encontramos a oportunidade de criar nossa própria essência. Ao aceitar nosso papel na criação do próprio sentido, podemos esculpir nossa liberdade enquanto viva obra de arte, uma existência que, embora sempre incompleta, pode ser plena de significado e autenticidade.
Referências:
Sartre, J. P. (1943). O Ser e a Nada. São Paulo: Editora Vozes.
Lacan, J. (1953). "O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu". In: Escritos. São Paulo: Editora Perspectiva.
Nietzsche, F. (1883). Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martins Fontes.
Grimal, P. (1951). Dicionário de Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Editora Martins Fontes.
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