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Entre tesouras e machismos (crônica)


Na barbearia, um templo de masculinidades emaranhadas, o ambiente é recheado com o aroma penetrante da loção pós-barba, misturando-se com o desabor de papos que ainda reverbera a auto afinação masculina das conversas de bares, como ecos de alguma sentido de esperança que um dia esses pensamentos se calarão. As cadeiras de couro, desgastadas e brilhantes pelo tempo e pelas histórias que carregam, são testemunhas de rituais que transcendem a simples aparagem de cabelos. Aqui, onde os espelhos refletem não apenas rostos, mas anseios e incertezas, eu me sento, um observador silencioso em meio a um frenesi de masculinidades explícitas e escondidas nas linguagens verbais e não verbais.

A barbearia talvez seja um microscosmo social: os homens esperam suas vezes, alguns com o olhar profundo na tela do celular, outros metidos em um jogo de futebol enquanto esperam, mas todos, de alguma maneira, prontos para expor suas imagens em fragmentos. As conversas começam de forma leve, despretensiosa, como um toque suave na superfície de um lago. Falas sobre o último jogo, a escalação do time, as lesões e, por fim, as conquistas que, em seus relatos, soam como ecos de uma guerra interna. Mas logo, as bravatas se desbotam e surgem os sonetos não cantados das inseguranças, um sussurro de admiração que me intriga, um murmúrio quase inaudível que flutua no ar.

Um deles menciona o corpo atlético de um jogador, a beleza escultural de um ator cujo sorriso é um convite à contemplação que ele revela sem dizer exatamente isso. O tom de sua voz se suaviza, e os olhos brilham com uma luz que se assemelha a um desejo intenso, mas que carrega uma identificação profunda, uma emoção complexa que desafia a rigidez da norma. O que é isso, se não uma dança entre o desejo do Outro e o espelho que ele oferece?

Ao longo da conversa, o barbudo que está na cadeira ao lado, com a tesoura brilhando sob a luz do lugar, faz uma afirmação que ecoa como uma verdade universal: “Os homens são todos iguais, com suas fraquezas e medos”. De repente, as suas palavras tornam-se uma revelação, uma janela aberta para um abismo de reflexões. Freud nos diria que o desejo é uma força motriz, um impulso que transcende a mera atração física; Lacan nos convidaria a considerar a construção do eu em relação ao que não se pode ter. Assim, nesse espaço, o eu se fragmenta e se reconstrói, enquanto os homens tentam afirmar suas identidades, travando uma luta silenciosa contra o vazio.

As figuras femininas, misturadas nas conversas, sempre escondidas atrás de um véu de piadas e ironias, são o que mais fascina. Uma fala está lá, esvoaçando como uma borboleta, saltitando pela atmosfera com sua icônica presença. O corpo de uma mulher é alucinado na admiração, enquanto, nas entrelinhas, o medo se traduz em aversão. Simone de Beauvoir, com seu olhar penetrante, nos lembraria que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, e nesse processo árido, os homens, por sua vez, também se tornam aquilo que são: produtos de uma cultura que lhes ensina a temer e idolatrar o feminino ao mesmo tempo.

Entre risos nervosos e provocações sutis, as conversas se desenrolam como um novelo de lã, onde a fragilidade masculina se revela em sua totalidade. Um homem, com a tesoura a cortar suas inseguranças, faz uma piada sobre a fragilidade masculina – e todos riem, mas a risada é amarga, como se soubessem que a fragilidade é também um espelho que reflete suas próprias vulnerabilidades. É como um jogo de xadrez onde se tenta esconder a rainha atrás dos peões, num movimento tático de defesa. Nietzsche, com sua voz ecoante, surge como um espectro em minha mente: “Quem tem um porquê para viver suporta quase qualquer como.” O porquê deles, nesse cenário banhado por lâmpadas amarelas, é a busca pela aceitação, pela validação de suas virilidades em um mundo que se sente hostil.

O que é a realidade, senão um palco em que todos vestem suas capas de pretensão e ilusão? As conversas entre os homens revelam um desejo universal de conexão, um espaço fértil onde as admirações se tornam confissões disfarçadas, e cada elogio ao outro homem é, na verdade, um grito silencioso por pertença. O ódio ao feminino revela um medo profundo de perder o que nunca se teve: a liberdade de ser genuinamente eles mesmos... Talvez a sorte que ser mulher abre.

Enquanto o barbeiro, com suas mãos hábeis e olhar atento, molda os cabelos, eu me pergunto: quem somos nós, senão reflexos distorcidos de nossas próprias inseguranças e desejos? De que adianta seguir o roteiro da masculinidade que nos foi imposto, se somos obrigados a enterrar nossas história no disfarce de risadas e bravatas? O ambiente, então, torna-se um grande espelho quebrado, refletindo pedaços de nós, e em cada fragmento, a verdade nua e crua se faz presente.

À medida que as conversas avançam, tecem um manto invisível que nos une e nos distancia ao mesmo tempo, revelando um labirinto onde cada homem se perdia e se encontrava. As vozes se entropizam em um ritmo quase hipnótico, e nas fissuras desse cenário, entre cortes de cabelo e toques de navalha, a vida se revela em sua complexidade, como um fio de cabelo que se recusa a ser domado. No final, o que encontramos ali não é apenas um ajuste no seu exterior, mas uma busca insaciável por identidade e compreensão em um mundo que, por muitas vezes, se mostra indiferente. A barbearia não é apenas um lugar de aparação; é um espaço de reflexão, uma arena onde o masculino se debate e se expressa, onde as admirações e os conflitos dançam em um balé silencioso que ecoará na definição de cada um por muitos e muitos anos.

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