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O que os olhos não vêem, o coração não sente: uma reflexão sobre percepção e realidade

Se a percepção é uma das chaves para nossa realidade emocional, até que ponto as experiências que não vivenciamos deixam marcas? Como as interpretações individuais do que é e do que não é influenciam nossas interações e relações com o mundo ao nosso redor? Se considerar que a falta de percepção pode resultar em desconexão emocional, como podemos cultivar uma maior relação com as nossas experiências sensoriais e imaginativas?

A máxima popular "o que os olhos não vêem, o coração não sente" ressoa na discussão / provocação filosófica sobre a percepção e a realidade. Essa frase tão dita diz que que a ausência de percepção sensorial pode levar à inexistência emocional de um objeto ou evento. Será? Assim, podemos conectar essa ideia à filosofia de George Berkeley, que propôs que a realidade é constituída pela percepção. Segundo ele se não vemos a árvore cair no silêncio da floresta, seu barulho, de certa forma, não nos afeta, permanecendo a noção de que a realidade é um constructo do nosso olhar.

Na psicanálise lacaniana, a relação entre o Real, o Simbólico e o Imaginário oferece uma nova perspectiva sobre essa questão. O Real refere-se àquilo que é impossível de ser simbolizado ou plenamente compreendido, enquanto o Simbólico é a estrutura da linguagem e da cultura que molda nossa experiência. O Imaginário, por sua vez, é o espaço das imagens, e portanto, o resto se algumas das ilusões inevitáveis. Quando afirmamos que "o que os olhos não vêem, o coração não sente", estamos tocando na fragilidade do Imaginário, que pode depender também da percepção para criar sentido às emoções.

As neuroses obsessivas e as paranóias, conforme Lacan, podem ser vistas como meios na forma como o sujeito lida com esses três registros. A neurose obsessiva, por exemplo, pode se manifestar em uma busca incessante pela certeza e pela 'percepção verdadeira', enquanto a paranoia se alimenta de um excesso de simbolização que pode distorcer ou até criar uma realidade. Portanto, a percepção e a ausência dela têm implicações diretas na entrada da pessoa na existência, refletindo o que,  geralmente, é uma luta interna entre o que é enquanto é, e aquilo que é imaginado.

Assim, a pergunta filosófica "Se uma árvore cai na floresta, mas não há ninguém por perto, ela faz barulho?" se torna uma reflexão sobre a questão da realidade. Se não há um observador, a árvore pode cair sem que haja um som que ressoe no coração de alguém. O Real, nesse contexto, se torna uma experiência solitária, enquanto a percepção se torna um mediador de nossas emoções e sentimentos. A falta de percepção pode levar à desvalorização do que não é visto, e nesse vazio, a suposição sobre aquilo que não se viu, reforçando a ideia de que a realidade é, em grande parte, uma construção subjetiva.

A relação entre sensação e percepção é fundamental para compreendermos como interpretamos o mundo ao nosso redor. A sensação é o primeiro contato com o estímulo, enquanto a percepção é a interpretação desse estímulo em um contexto emocional e cognitivo. Claro que essa lógica nem sempre é lógica no sentido de causalidade e sucessão de efeitos, já que sensação e percepção geralmente se misturam e se desorganizam. Quando afirmamos que "o que os olhos não vêem, o coração não sente", estamos reconhecendo que a ausência de estímulos sensoriais pode resultar em uma desconexão emocional. Assim, a percepção se torna um elemento, entre os vários outros, na formação de nossas experiências e emoções.

Além disso, a percepção não se limita ao que é imediatamente visível. Muitíssimos invisíveis são carregados de afetos. Podemos imaginar sons, cores e cheiros que nunca experimentamos, mas que, através da memória e da imaginação, se tornam parte de nossa verdade, e portanto, dos nossos sentimentos. Esse fenômeno coloca em evidência que a percepção é uma construção ativa, que envolve não apenas os sentidos, mas também a memória e a imaginação. Em outras palavras, mesmo que a árvore caia em uma floresta deserta, podemos imaginar seu som e, assim, permitir que ele ressoe em nosso coração. Mesmos o que não foi vivido pode ser vivo produtor e reprodutor de angústias.

A proposta de Berkeley de que "ser é ser percebido" se alinha a essa discussão, pois sugere que a realidade é dependente da percepção. Se não percebemos algo, sua existência se torna questionável. Isso se reflete nas neuroses obsessivas, onde o sujeito busca incessantemente a confirmação de sua realidade através da percepção. A falta de evidências sensoriais pode levar a um estado de tanta angústia e incerteza, pois o coração obsessivo anseia por sentir aquilo que os olhos não conseguem ver.

Por outro lado, a paranoia pode ser vista como uma distorção da percepção, onde o sujeito atribui significados excessivos a estímulos que, em condições normais, seriam irrelevantes. Esse fenômeno, ou efeito, pode ser interpretado como uma tentativa de dar sentido a uma realidade confusamente percebida como ameaçadora. Assim, a percepção se torna um campo de batalha entre o que é realidade e o que é imaginado, refletindo a confusão angustiante.

Essa interseção, apresentada aqui, entre a filosofia de Berkeley e a psicanálise lacaniana nos permite explorar as complexidades da percepção e da realidade subjetiva. A desconexão angustiante entre o que penso e o que é, pode ser especialmente identificada em casos de neurose obsessiva, onde a busca pela certeza se torna, em geral, a grande obsessão.

Por outro lado, a paranoia, caracterizada por um excesso de interpretação e simbolização da realidade, onde o indivíduo desenvolve uma desconfiança intensa e fixa em relação aos outros, revela como a percepção pode ser distorcida, levando a uma interpretação não compartilhada com as outras pessoas. Essa distorção pode resultar em uma experiência emocional intensa e desagradável, onde a pessoa se sente ameaçado por algo que, em última análise, pode não ser aquilo que é visto. Portanto, a relação entre percepção e emoção não é simples e tão pouco pode ser compreendida sem uma análise de outras camadas, já que, em substância, é uma complexidade que reflete abismos entre o Real, o Simbólico e o Imaginário.

A proposta de um experimento que investiga a percepção de sensações não vivenciadas evidencia a complexidade desse fenômeno, mostrando como a mente cria imagens e associações que extrapolam a experiência direta. Essa capacidade imaginativa sugere que a percepção não se limita aos estímulos visuais, mas se estende ao que pode ser sugerido pelo Imaginário, corroborando a ideia de que nossa compreensão do mundo é mediada pela fantasia e pela memória. Assim, a percepção se torna uma construção que envolve tanto a apreensão sensorial quanto a elaboração mental das experiências.

Diante disso, a questão sobre o barulho testemunhado da árvore que cai na floresta serve como um metáfora da tensão entre percepção e angústia. Já que mesmo sem observador, a queda da árvore pode ser imaginada e emocionalmente ressoada, reforçando o papel da percepção na formação de nossas experiências emocionais. Essa relação entre o que é visto e o que é imaginado nos leva a entender que a realidade é, em grande medida, uma construção subjetiva, onde a ausência de percepção direta não impede que sentimentos e experiências se manifestem. A frase "o que os olhos não vêem, o coração não sente" simplifica essa dinâmica, destacando a importância da percepção na nossa vivência emocional e na compreensão do mundo.

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