"Sem você, a emoção de hoje seria a pele morta do passado"
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
"O Fabuloso Destino de Émile Poulain" é um filme que narra uma história repleta de surpresas e desdobramentos inesperados. A frase impactante de Hipólito, "Sem você, a emoção de hoje seria a pele morta do passado", nos provoca uma reflexão profunda sobre a importância das relações interpessoais na formação de nossas experiências emocionais. Essa afirmação não é apenas uma constatação poética; é um convite à introspecção, sugerindo que a presença do outro é vital para que nossas emoções atuais ganhem vida e significado. Sem essa conexão, seríamos reduzidos a meras sombras de nossas vivências, ecos sem vida que se assemelham à "pele morta" que descartamos, sem qualquer valor ou relevância.
A psicanálise, especialmente através das lentes de Sigmund Freud, nos ensina que a constituição do eu é indissociável das interações sociais e dos vínculos afetivos. Em sua obra "Das Unbehagen in der Kultur" (1930), Freud enfatiza que as relações, particularmente as familiares, são fundamentais na formação do sujeito. As emoções não existem em um vácuo; elas estão sempre entrelaçadas com as experiências que compartilhamos. Lacan complementa essa visão ao afirmar que "o desejo é o desejo do Outro", reforçando a ideia de que nossa subjetividade é moldada em relação ao outro. Nesse contexto, podemos classificar as emoções em primárias e secundárias: as primeiras emergem de forma imediata e instintiva, enquanto as secundárias são construídas através das interações e experiências que vivemos com os outros. A frase de Hipólito, portanto, destaca essa dependência emocional, sugerindo que a presença do outro é indispensável para que as emoções do presente não se tornem meros ecos vazios do passado.
Essa interconexão entre emoção e relações interpessoais é um tema recorrente na literatura brasileira. Em "Dom Casmurro", Machado de Assis ilustra a busca de Bentinho por amor e reconhecimento, revelando como a falta de vínculos autênticos pode levar à desilusão e ao vazio existencial. A obra retrata a complexidade das relações humanas, mostrando que a insegurança e a dúvida podem corroer nossas emoções mais profundas. Da mesma forma, em "A Moreninha", de Joaquim Manuel de Macedo, a busca por um amor verdadeiro evidencia como as conexões emocionais são essenciais para a realização pessoal, ressaltando que a ausência do outro resulta em experiências insatisfatórias e superficiais. Esses autores não apenas narram histórias de amor e perda, mas capturam a essência da experiência humana, demonstrando que nossas emoções são indissociáveis das interações sociais que vivenciamos.
Pensadoras brasileiras também exploram a relação entre identidade e vínculos. Clarice Lispector, em "A Paixão Segundo G.H.", investiga a relação do eu com o outro em um contexto de autoconhecimento e transformação, revelando como a presença do outro pode atuar como um espelho, refletindo aspectos ocultos da psique. Lya Luft, em "As Parceiras", aborda a complexidade das relações femininas e como elas moldam a identidade e a experiência emocional das mulheres. À luz da contemporaneidade, novas discussões emergem sobre a natureza das relações humanas em um cenário de solidão e interação digital, questionando a autenticidade das emoções em um mundo repleto de conexões superficiais.
No filme, a frase de Hipólito opera como um Significante-Mestre, estruturando a narrativa ao expor a relação fundamental entre o sujeito e o Outro. Sob a lente lacaniana, o enredo revela-se uma encenação do desejo mediado pelo Outro. Émile, em sua busca por propósito, encarna o sujeito dividido ($), cuja alienação no registro imaginário — representada por relacionamentos superficiais e desilusões profissionais — o mantém preso à méconnaissance de seu próprio desejo. Hipólito, por sua vez, assume a função do Grande Outro, aquele que interpela o sujeito a confrontar sua falta (manque-à-être) através do discurso. A solidão de Hipólito, cercado por livros e memórias, metaforiza o real inominável que resiste à simbolização. Seu isolamento não é mera reclusão, mas uma posição ética diante do simbólico: ao recusar-se a participar das ficções sociais, ele encarna a figura do analista, cuja palavra (parole vide) desloca Émile de sua fixação no imaginário.
Quando os dois se encontram, a frase de Hipólito atua como um ato de fala que introduz uma ruptura no discurso do mestre que domina a vida urbana de Émile. O protagonista, ao confrontar-se com essa máxima, é desafiado pela verdade lacaniana de que "o desejo é o desejo do Outro": suas emoções só adquirem consistência simbólica quando reconhecidas no campo do Outro. Essa dinâmica se estende aos demais personagens. Clara, mergulhada em uma crise conjugal, vive a ilusão do amor imaginário, onde o parceiro é reduzido a um objeto a fantasmático. Sua reconexão com Émile restaura a dimensão do desejo como falta, permitindo-lhe reencontrar-se no registro simbólico. Já Mateus, alienado em sua ambição, personifica o sujeito capturado pelo discurso capitalista, que reduz o gozo (jouissance) a uma busca obsessiva pelo sucesso — uma "pele morta" que Lacan associaria à morte do sujeito sob o domínio do superego. A transformação de Mateus, ao abandonar essa lógica, ilustra a passagem da pulsão de morte para a aceitação da castração simbólica.
A construção visual do filme, com suas cores frias e escuras contrastando com tons quentes, materializa a oposição entre o real traumático (solidão, alienação) e o simbolizado (comunhão, afeto). As cenas de Émile sob a chuva ou Hipólito revisando fotos antigas evocam o objeto perdido (das Ding), enquanto os momentos de afeto coletivo representam a ilusão necessária do fantasma que sustenta o laço social. No clímax, quando Émile repete a frase de Hipólito ao tomar sua decisão crucial, ele performa um ato ético no sentido lacaniano: reconhece que suas escolhas só têm significação no campo do Outro. O abraço final com Clara, sob o olhar distante de Hipólito, não é uma resolução edípica, mas a aceitação de que o desejo jamais se completa — apenas se desloca, perpetuando-se na cadeia significante.
A "pele morta do passado" é, assim, o que resta quando o sujeito nega sua condição de ser falante (parlêtre), recusando-se a se inscrever no simbólico. O filme, portanto, não celebra o amor romântico, mas expõe a verdade do desejo: só através do Outro o sujeito escapa à mortificação imaginária e acessa a dimensão pulsional da vida. Hipólito, como figura do analista que se apaga, ensina que as emoções "vivas" são aquelas que resistem à petrificação do eu, circulando no eterno movimento do desejo. Portanto, convido o leitor a refletir: como podemos cultivar essas relações que dão vida às nossas emoções, evitando que se tornem meras "peles mortas" de um passado que já não nos serve?
Comentários
Postar um comentário