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A psicanálise e a importância do afeto na aprendizagem

A provocação psicanalítica que ecoa as palavras de Brené Brown no SXSW 2025 que diz: "A mente não aprende com comandos. Ela aprende com histórias", provoca a repensar o sentido e o fazer da educação, naquilo que questiona os modelos tradicionais, geralmente, baseados na repetição e no adestramento, e também a valorizar as narrativas afetuosas na construção do conhecimento.

Em Freud, o afeto é a expressão qualitativa da quantidade de energia pulsional, um elemento central na dinâmica psíquica, ligado tanto ao prazer quanto ao desprazer. E isso é apenas o início de bastante considerações teórica. Inicialmente, Freud via o afeto como uma espécie de "carga", como tal, poderia ser deslocada ou descarregada, como nos casos de histeria, onde o afeto "estrangulado" encontrava expressão em sintomas físicos. Mas, posteriormente, Freud complexifica a noção de afeto, distinguindo-o da representação e reconhecendo sua importância na formação do inconsciente e na compreensão teórica da angústia.
 
Jacques Lacan, um dos mais influentes teóricos da psicanálise, propõe uma visão rica e complexa sobre a relação entre afeto, linguagem e o Outro. Para Lacan, o afeto não é simplesmente uma resposta emocional ou uma "descarga" energética, mas sim um elemento profundamente inserido na ordem simbólica da experiência humana. Essa perspectiva significa que os afetos são moldados e interpretados dentro dos sistemas de significação que a linguagem e o discurso proporcionam. Lacan argumenta que a linguagem desempenha um papel crucial na formação do sujeito, pois é através da linguagem que os afetos se tornam significativos. Em sua teoria, o afeto é sempre mediado pelo discurso, o que implica que a maneira como nos expressamos e como interpretamos as emoções está indissociavelmente ligada às estruturas linguísticas. 

A linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também uma forma de organizar e estruturar o próprio mundo interno. A figura do Outro, central na teoria lacaniana, refere-se àqueles que nos cercam e às normas sociais e culturais que nos influenciam. O Outro é responsável pela inserção do sujeito em um contexto social mais amplo, oferecendo as referências através das quais os afetos são compreendidos e vividos. Assim, o afeto, ao ser nomeado e expressado, se torna parte de uma relação dialética com o Outro e com as expectativas sociais. Outro ponto fundamental na obra de Lacan é a conexão entre afeto, desejo e gozo. O desejo, em sua perspectiva, é uma força motriz que impulsiona o sujeito, sendo sempre mediado pelas trocas simbólicas que ocorrem no contexto relacional. O gozo, por sua vez, representa uma forma de satisfação que vai além do mero prazer, expressando uma relação complexa com as demandas do desejo. O afeto, assim, se torna um mediador entre o desejo e o gozo, sendo essencial na compreensão de como os sujeitos experimentam e expressam suas emoções. 


A frase de Brené Brown fala da questão que abarca o aprendizado no sentido de um processo profundamente ligado ao afeto. Freud, desde seus primeiros escritos, nos ensina que o inconsciente, essa instância da psique que escapa ao controle da razão, é onde se desenrolam os nossos desejos, os nossos medos, as nossas fantasias.

Em "Estudos sobre a Histeria" (1893-1895/1996), Freud e Breuer demonstram como os sintomas histéricos, longe de serem meras manifestações físicas, eram expressões simbólicas de conflitos psíquicos recalcados, de traumas não elaborados, de emoções reprimidas. A cura, nesse sentido, não passava pela simples supressão dos sintomas, mas sim pela elaboração desses conflitos, pela rememoração das experiências traumáticas, pela liberação dos afetos reprimidos.

A mente, portanto, não é uma tábula rasa, um receptor passivo de informações. Ela é um campo de forças, um palco de emoções, um labirinto de desejos. O aprendizado, para ser significativo, precisa tocar nesse campo, precisa mobilizar os afetos, precisa despertar a curiosidade, precisa fazer sentido para o sujeito. Mas, não seria o próprio inconsciente um contador de histórias? Não seria a nossa vida psíquica uma trama tecida com fios de afeto, de memória, de fantasia?

A filosofia helenística, com sua ênfase na busca pela serenidade, pela ataraxia, pela ausência de perturbações, nos oferece ferramentas para lidar com a angústia existencial, com a incerteza e a finitude da vida. O estoicismo, o epicurismo e o ceticismo, cada um a seu modo, nos convidam a cultivar a virtude, a aceitar o destino, a viver de acordo com a razão.

As narrativas, nesse contexto, desempenham um papel fundamental. As histórias dos heróis, dos sábios, dos deuses, nos oferecem modelos de conduta, nos inspiram a superar os desafios, a enfrentar as adversidades, a encontrar um sentido para a nossa existência. As fábulas, os mitos, as parábolas, nos ensinam lições valiosas sobre a vida, sobre a morte, sobre o amor, sobre a amizade, sobre a justiça.

Mas, não seria a própria vida uma narrativa em constante construção? Não seria a busca pela serenidade, pela ataraxia, um processo de aprendizado, de autoconhecimento, de transformação? E as histórias que ouvimos, que lemos, que contamos, não seriam um bálsamo para a alma, um remédio para as nossas angústias, um guia para a nossa jornada?

Nietzsche, com sua crítica radical à moralidade tradicional, com seu convite à afirmação da vida, à criação dos próprios valores, nos inspira a transcender os limites impostos, a nos tornarmos senhores do nosso próprio destino. A narrativa, para Nietzsche, é uma ferramenta poderosa de criação de sentido, de transvaloração dos valores, de superação do niilismo.

Em "Assim Falou Zaratustra" (1883-1885/2011), Nietzsche nos apresenta um profeta que desce da montanha para anunciar a morte de Deus e a necessidade de o homem criar os seus próprios valores. Zaratustra, com suas parábolas, com seus aforismos, com seus discursos poéticos, nos convida a questionar as verdades estabelecidas, a romper com as amarras do passado, a construir um futuro mais livre e autêntico.

A mente, para Nietzsche, não é um receptáculo passivo de informações, mas sim uma força criadora, uma potência de vida. O aprendizado, nesse sentido, não é a mera assimilação de um saber pronto e acabado, mas sim um processo de criação, de invenção, de descoberta. Mas, não seria a própria vida uma obra de arte em constante construção? Não seria a nossa existência uma narrativa que se escreve a cada instante, a cada escolha, a cada ato?

A provocação psicanalítica sobre a mente que aprende com histórias nos convida a repensar a educação, a questionar os modelos tradicionais baseados na repetição e no adestramento, a valorizar o poder das narrativas afetuosas na construção do conhecimento.

A educação, em sua essência, não pode ser a transmissão de informações, e sim a criação de um espaço de encontro, de diálogo, de partilha, onde o afeto, a curiosidade, a imaginação, a criatividade possam florescer. É um convite a construir narrativas que nos toquem, que nos transformem, que nos abram para o mundo e para nós mesmos.

Mas, afinal, pensando criticamente, não seria a própria educação uma narrativa em constante construção? 

Não seria a nossa busca de aprendizado uma narrativa tecida com fios de afeto, de descoberta, de superação? 

E os educadores, como contadores de histórias, não seriam os responsáveis por despertar em cada estudante a paixão pelo conhecimento, a vontade de aprender, a capacidade de criar a sua própria narrativa?

Claro que isso não é tudo na complexidade que é a aposta por educar, mas é muito!


Referências:

FREUD, Sigmund; BREUER, Josef. Estudos sobre a histeria (1893-1895). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. II.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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