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Desconfiança Neurótica: o entre a defesa e a prisão

A desconfiança, essa sombra que paira sobre as relações humanas, essa névoa que turva a percepção do outro, esse espinho que fere a alma, é um tema complexo e multifacetado, que convida a uma profunda reflexão psicanalítica e filosófica. Neste ensaio, mergulharemos nas nuances da desconfiança neurótica, distinguindo-a das alucinações paranoicas, explorando seu papel defensivo, sua inscrição no inconsciente, e as possíveis vias de negociação com essa angústia que, embora singular, não justifica a exigência de esclarecimentos do outro.

É crucial, de início, estabelecer a distinção entre a desconfiança neurótica e a alucinação paranoica. Enquanto a desconfiança neurótica se manifesta como uma suspeita persistente, uma dúvida constante sobre as intenções do outro, a alucinação paranoica se caracteriza por uma convicção delirante, uma certeza inabalável. Freud, em "Neuropsicoses de Defesa" (1894/1996), diferencia neuroses e psicoses: as primeiras, como a neurose obsessiva e a histeria, resultam de um conflito entre o ego e o id; as últimas, como a paranoia, envolvem ruptura com a realidade e falha na constituição do eu. A desconfiança neurótica, apesar do sofrimento, não implica perda do contato com a realidade, permitindo questionamentos. O paranoico, imerso em delírio, carece dessa autocrítica.

Como elucida Freud (1894/1996, p. 59), nas neuropsicoses de defesa, "o eu do paciente se afasta da representação incompatível", mas essa representação "continua a existir como uma fonte de afeto", o que pode gerar a desconfiança persistente. Essa distinção, contudo, não é estanque. A intensidade da desconfiança neurótica pode se aproximar do delírio paranoico, levantando a questão: seria a desconfiança um contínuo que, em seu extremo, se torna paranoia? Ou são estruturas psíquicas distintas?

A desconfiança neurótica é, essencialmente, um mecanismo de defesa erguido pelo ego contra a angústia, muitas vezes enraizada em experiências passadas, traumas e relações marcadas por decepção. A criança em ambiente instável, onde promessas não são cumpridas, a mentira é frequente e o amor é condicional, pode desenvolver desconfiança generalizada. Inicialmente protetora contra a dor, essa desconfiança pode se cristalizar em traço de personalidade, um modo de estar no mundo.

Em "Inibições, Sintomas e Ansiedade" (1926/1996), Freud demonstra que a angústia impulsiona os mecanismos de defesa. O ego, ameaçado por perigos internos (pulsões) ou externos (frustrações), mobiliza defesas para evitar o desprazer. A desconfiança, então, evitaria a angústia da decepção, da traição, da perda. Lacan (1964/1998, p. 214) complementa: "A angústia não é sem objeto", e o objeto da angústia, na desconfiança, é a potencial traição, a possível decepção.

Contudo, essa defesa é paradoxal: ao se proteger da dor da possível decepção, o sujeito se priva da alegria da confiança, da entrega, da intimidade. A fortaleza erguida para proteger torna-se prisão que impede o florescimento das relações. Mas, seria possível viver sem defesas? Não seria a angústia, inerente à condição humana, um motor para a criação de mecanismos, ainda que imperfeitos, de proteção?

A angústia que alimenta a desconfiança neurótica não é mera construção racional, mas uma inscrição no inconsciente, marca indelével de experiências, muitas vezes não lembradas. Lacan, relendo a psicanálise, destaca a importância da linguagem e do Outro na constituição do sujeito. Para Lacan (1953-1954/1986, p. 13), "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", é o discurso do Outro. A desconfiança, nesse sentido, seria uma mensagem inscrita no inconsciente, uma mensagem do Outro: "Não confie! Você será traído!".

Internalizada, essa mensagem orienta relações, molda a percepção do outro, gerando expectativa constante de decepção. A desconfiança torna-se profecia autorrealizável, ciclo vicioso. Como observa Laplanche e Pontalis (1967/2001, p. 485), a "compulsão à repetição" é um conceito fundamental na psicanálise, e a desconfiança pode ser vista como uma repetição de padrões relacionais internalizados.

A questão crucial, então, é: como romper esse ciclo? Como desconstruir essa mensagem inscrita no inconsciente? Seria possível reescrever essa narrativa, substituindo a desconfiança pela confiança, a angústia pela serenidade, através da análise e do autoconhecimento?

A desconfiança neurótica, por mais intensa, não concede o direito de exigir esclarecimentos do outro, impor sua visão, cobrar explicações. A desconfiança é singular, construção subjetiva, resultante de uma história particular. O outro não é responsável pela desconfiança, não tem obrigação de se justificar, provar inocência.

Exigir esclarecimentos, nesse contexto, é violência, tentativa de controle, negação da alteridade. É transferir para o outro a responsabilidade por uma angústia própria, a ser elaborada em análise. Nasio (1995/1997, p. 87), ao discutir a paranoia, afirma que "o paranoico se defende da angústia projetando no outro a causa de seu mal-estar". Embora a desconfiança neurótica não seja paranoia, há um elemento de projeção: o desconfiado projeta no outro a possibilidade da traição, da decepção.

Como lidar, então, com a desconfiança do outro? Como estabelecer relações saudáveis sob a sombra da suspeita? Seria possível construir pontes de confiança, mesmo quando o outro se mostra desconfiado, questionando a própria possibilidade do amor e da entrega?

A saída para a desconfiança neurótica não reside na negação. Negar a angústia, reprimir a desconfiança, intensifica o sofrimento, alimenta o ciclo da suspeita. A saída, se existe, passa pela aceitação, pelo reconhecimento da desconfiança como parte de si, a ser acolhida, compreendida, elaborada. Passa, também, pelo diálogo interno, pela negociação com a voz que sussurra: "Não confie!".

É preciso questionar essa voz, confrontá-la com a realidade, buscar evidências. É preciso cultivar a autoconfiança, a autoestima, a capacidade de se relacionar de forma mais aberta. Quinet (2002/2009, p. 89), ao falar sobre o amor e a confiança, afirma que "amar é correr o risco da decepção", e a superação da desconfiança neurótica passa por aceitar esse risco.

A tarefa, contudo, não é simples. Superar a desconfiança, essa sombra que acompanha desde a infância, é um desafio. Seria a desconfiança, como a angústia, condição inerente à existência, companheira inevitável? Ou seria possível, através da análise, da reflexão filosófica, da arte, construir novas narrativas, ressignificar o passado e abrir-se para a confiança?

A desconfiança neurótica, em sua complexidade, coloca-nos diante de um dilema: construir fortalezas para nos proteger da decepção ou pontes para nos conectar, mesmo com o risco de nos ferirmos. Não há resposta simples, solução mágica. Cada sujeito, em sua singularidade, precisa encontrar seu caminho, sua forma de lidar com a desconfiança.

A psicanálise, a filosofia, a arte, a literatura, oferecem ferramentas para a jornada de autoconhecimento, elaboração da angústia, construção de relações mais autênticas. Mas a escolha é nossa. E você, o que escolhe? A fortaleza da desconfiança ou a ponte da confiança? A prisão da angústia ou a liberdade da entrega? A solidão da suspeita ou a alegria do encontro? A escolha, como sempre, é sua. E as consequências, inevitavelmente, também.


Referências Bibliográficas:

FREUD, Sigmund. Neuropsicoses de defesa (1894). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. III.
FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XX.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NASIO, Juan-David. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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