O ciúmes, na experiência analítica, não é simples defeito moral nem tempestade de ocasião: é bússola descalibrada que, mesmo errando o norte, revela a paisagem afetiva em que a pessoa caminha. Quando explode, o ciúmes quer garantias; quando silencia, alimenta fantasmas.
Entre o pedido de certeza e o rumor do desconhecido, a clínica se organiza como oficina de precisão: afiar a escuta, localizar palavras que inflamam, aplicar cortes de linguagem que devolvam medida ao que se apresentou como absoluto. Nietzsche lembraria que toda força pede forma; Lacan ensinaria que o desejo se diz como pode. Entre ambos, o trabalho clínico se compromete com um gesto simples e exigente: distinguir contradições de inversões nos discursos do ciúmes e, com essa distinção, abrir passagens onde antes havia labirinto.
Chame-se, aqui, ciúmes de esse afeto que vigia fronteiras do vínculo, teme perda e reivindica exclusividade de lugar; não apenas no amor romântico, também no trabalho, na amizade, na atenção parental, no reconhecimento público. Em sociedades estriadas por desigualdades, o ciúmes não nasce em terreno neutro. Lélia Gonzalez nos lembra que corpos foram historicamente convertidos em propriedade; Sueli Carneiro nos convoca a ver como a desumanização corrói até a possibilidade de confiar; Paulo Freire insiste que vínculos se educam na dialogicidade, não no controle. Quando a história inscreve no corpo a mensagem “pode ser tirado de ti”, o ciúmes encontra lenha fácil. O analista, então, não moraliza o afeto: interroga sua gramática, suas metáforas, seus automáticos. Eu, no ofício, escuto o ciúmes como fumaça que anuncia incêndio: interessa menos a fumaça em si e mais de que madeira ela vem.
A precisão clínica exige separar duas engrenagens do dizer. Contradição é choque entre enunciados que se anulam: “confio plenamente” e, minutos depois, “verifico tudo porque não dá para confiar”. Inversão é troca de posição sem troca de palavras: “eu protejo” vira “eu vigio” — o gesto é o mesmo, o estatuto muda de cuidado a controle; “eu sou esquecido” vira “eu me esqueço” — o sujeito passa de vítima a agente. Por que importa distinguir? Porque corrigir contradições costuma produzir defensivas (“não é bem isso”), enquanto nomear inversões pode suscitar curiosidade (“quando cuidado virou vigilância?”). A contradição pede pausa para que se escute o intervalo entre frases; a inversão pede espelho para que se observe a mudança de lugar do eu na frase. Machado de Assis seria aliado aqui: ironia fina, nada de sarcasmo; deslocar com elegância, deixando que a pessoa conclua o que precisa.
O manejo é verbal, mas seu alvo é ético: liberar a pessoa de slogans que aprisionam. Palavras como “sempre”, “nunca”, “prova”, “garantia”, “meu”, “dever” funcionam como algemas retóricas do ciúmes. O corte clínico intervém nesses pontos de pressão. Em vez de “você é incoerente”, um recorte: “quando diz ‘sempre’, lembra de um dia em que não foi assim?”; no lugar de “isso é paranoia”, uma torção: “o que exatamente precisa ver para que cuidado não vire vigilância?”; ao ouvir “ninguém me escolhe”, uma lupa: “quem é esse ‘ninguém’ na sua semana?” O objetivo não é vencer debate, é devolver singularidade ao que se apresentou como destino. Maria Rita Kehl já advertiu citando Freud: o indizível retorna como sintoma. Aqui, dizer com precisão é dar formas respiráveis ao indizível do ciúmes, retirando-o do porão do “tudo ou nada”.
Os efeitos da distinção aparecem no corpo do tratamento. Quando a contradição é mal tratada — apontada como falha de caráter —, produz vergonha ou teatralidade, duas formas de silêncio. Quando é bem manejada — suspensa e iluminada pelo intervalo —, produz surpresa e riso breve, sinal de que a frase desapertou o nó. Já a inversão, quando reconhecida, desloca a autoria: “sou refém das provas” pode tornar-se “tornei-me árbitro de provas que jamais bastam”. O ciúmes, assim, deixa de ser entidade mítica e vira prática concreta que pode ser descontinuada. A cada corte, uma engrenagem do controle perde dentes; a cada pausa, um automatismo perde fôlego. Eu vejo nisso uma micropolítica da liberdade: diminuir a taxa de vigilância interna é devolver tempo ao vivido.
Importa, também, situar o ciúmes no cenário tecnológico e social que o amplifica. Redes sociais funcionam como salões de espelhos: recortes de vida, indicadores de presença, notificações que prometem onisciência. O ciúmes adora painéis de controle. A clínica, então, não demoniza telas; pergunta pelo contrato subjetivo: “quando o gesto de checar começou a organizar teu dia?”, “o que se perde quando tudo é visível?”, “que acordo de cuidado poderia substituir o regime de prova?” A ética freireana oferece norte: combinar expectativas, nomear limites, cultivar palavra empenhada. Singularidades pedem arranjos criativos: há relações monogâmicas e não monogâmicas, há formas de amizade que cabem fora do molde, há modos de pertencimento que rejeitam posse. O ciúmes ganha outro peso quando se percebe que exclusividade não é sinônimo de apagamento de mundo.
O analista opera como maestro de silêncios e afinador de tons. Não se interpreta o ciúmes como quem define culpa; intervém-se para fazer ouvir o que já estava dito sem aviso. Um exemplo de contradição bem cortada: “não me importo com ex-parceires, só não quero que conversem” — aqui, a devolução pode ser “o que acontece com você quando conversam?”; o foco sai da proibição e entra na sensação. Um exemplo de inversão bem nomeada: “eu cuido porque amo” que, em outra cena, surge como “amo quando me obedecem” — a intervenção localiza o giro: “em que momento cuidado virou obediência?” O efeito é ético e prático: abre-se espaço para renegociar pactos, redefinir gestos, abandonar dispositivos de prova. Clarice Lispector diria: “é preciso aprender a desaprender para aprender de novo.” O ciúmes, domesticado por linguagem precisa, desaprende o reflexo de morder.
O leitor, leitora, talvez se pergunte: e o que fazer quando doem as evidências? A clínica não promete anestesia. Propõe musculatura para sustentar o real sem se confundir com ele. Há traições, há perdas, há deslealdades estruturais que atravessam cor, gênero, classe, deficiência; nada disso se resolve com boa vontade. Mas o ciúmes não precisa governar antes do fato. Ao distinguir contradições de inversões, a pessoa aprende a se colocar de modo menos reativo e mais autoral. Autorar o próprio lugar — eis a operação. Não confundir cuidado com vigiar, nem amor com posse, nem compromisso com clausura. A sensibilidade cirúrgica serve a isso: dar nome ao excesso, abrir janela no porão, arejar a ferida. Como na boa carpintaria, lixa-se o que estraga o encaixe, não a peça inteira.
Concluo com uma imagem: o ciúmes é cão de guarda que, sem treino, late para o vento e morde quem o alimenta. A clínica não o sacrifica nem o solta sem guia; ensina comandos novos. Palavra é comando. Quando a frase “prova que me ama” se transforma em “vamos combinar como cuidar”, o cão de guarda deita. E, deitado, vira companhia — não capataz. A vida, assim, recupera sua dignidade de caminho, não de corredor de revista. Implicar-se no presente, com cortes justos e linguagem limpa, é escolher esse caminho: menos barulho, mais sentido.
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