A dor, na psicanálise, não é apenas sintoma ou ruído; é forma e conteúdo, música e ruído ao mesmo tempo. Quando ascende à palavra, a dor pede tradução e risco: traduzir é sempre operar com perda, e arriscar é aceitar que algo do sentido seja cortado para que o sujeito se desprenda daquilo que o captura. Nietzsche ensinou que a vida, quando ganha coragem, faz do sofrimento uma força de transvaloração; Lacan, por sua vez, lembrou que o desejo se escreve na carne da linguagem. Entre ambos, a clínica encontra a sua régua e o seu bisturi: escutar a dor como mensagem, operar cortes de palavra que desfaçam amarras, e distinguir com precisão cirúrgica duas engrenagens do dizer — contradição e inversão —, já que confundí-las esteriliza o tratamento, enquanto separá-las abre caminho para efeitos de liberdade.
Chamo dor, aqui, de tudo o que lateja entre o corpo e a história: aquela fisgada que nasce no luto, a queimadura do racismo cotidiano de que fala Lélia Gonzalez, a ferida do sexismo denunciada por Sueli Carneiro, o cansaço estrutural da desigualdade que Milton Santos cartografou nas cidades partidas. Dor é também a língua que não encontra pouso, a palavra engasgada que Clarice Lispector farejou na vida comum. Ao sentar-se diante da pessoa analisante, a pessoa analista não caça sintomas como quem colhe mariposas; escuta o tremor das asas. Eu, em clínica, procuro a vibração das frases: onde falham, onde insistem, onde tropeçam no mesmo degrau. A dor não mente, mas o discurso a recobre com véus. O trabalho é desvelar sem despir; cortar sem mutilar; separar sem quebrar.
A sensibilidade cirúrgica de que depende esse trabalho não é dom místico nem técnica fria; é uma ética do gesto preciso. Pensa-se em bisturi, mas o instrumento é a palavra. Não se trata de interpretar o mundo inteiro a cada sessão; trata-se de saber quando calar foi suficiente e quando uma palavra, em seu lugar exato, fere o tecido do engano para que cicatrize certo. Paulo Freire chamaria isso de “conscientização” em escala íntima: um convite para ler a própria vida como texto, onde margens e linhas foram impostas por outrem e podem ser reescritas. Na clínica, esse convite toma forma de pergunta curta, pontada irônica, devolução do dito com leve torção. O corte é o que separa o que a pessoa diz do que repete, o que faz ruir o automatismo de um “sempre” ou de um “nunca” que escraviza o corpo e a vida.
É crucial, então, diferenciar contradição de inversão. A contradição é a colisão entre enunciados: “não preciso de ninguém” e, três minutos depois, “ninguém liga para mim”. O efeito clínico, se o bisturi falhar, é moralismo ou pedagogia: apontar a incoerência e pedir coerência. Mas coerência é virtude cívica; em análise, interessa a lógica do desejo. A intervenção cirúrgica, diante de contradições, não humilha nem corrige; suspende a pressa de harmonizar e faz escutar o intervalo. O intervalo é onde o desejo respira. A inversão, diferente disso, não é choque de frases; é giro de posição. “Eu controlo tudo” vira “tudo me controla” sem que as palavras mudem, apenas a ênfase: passa-se do agente ao paciente. Na inversão, a pessoa não se contradiz; muda de lugar na frase e, assim, muda de lugar no mundo. O efeito clínico desejável, quando se reconhece a inversão, é localizar o salto: “em que momento o controle virou cativeiro?” A pergunta corta o feitiço.
A dor se alimenta de inversões que se passam por contradições. Tomemos o enunciado “não me afeta”: repetido com rigor, torna-se muralha. Num ponto de escuta, o timbre revela tremor; noutro, o corpo denuncia um sobressalto. Nomear a contradição — “afeta, sim” — produz defesa. Isolar a inversão — “quando não afeta, quem fala por ti?” — abre fresta. Machado de Assis, mestre das máscaras, instrui sem jargões: basta uma ironia para virar do avesso o discurso presunçoso. A ironia clínica, quando ética, não ridiculariza; destila. Uma frase devolvida com leve deslocamento oferece à pessoa a chance de reconhecer de onde fala, e de onde gostaria de falar. Não se troca dor por felicidade instantânea; troca-se posição de cativeiro por posição de autoria, o que já é outro nome para dignidade.
Essa distinção orienta o manejo de palavras que operam como bisturis. Há termos-gatilho (“sempre”, “nunca”, “todo mundo”, “nada”) que colam o sujeito a um destino de pedra. Há fórmulas de apagamento (“não quero pensar nisso”, “isso foi nada”) que empurram a dor para o porão onde, como ensinou Maria Rita Kehl, ela volta como sintoma. O gesto cirúrgico é simples e exigente: recortar, no fluxo, a palavra totalizante; devolvê-la em cacos; perguntar pelo caso. Onde “sempre”, qual dia, qual cena? Onde “nunca”, que exceção resiste? Esse recorte desinflaciona o absoluto e devolve medida, permitindo que a dor troque de regime: de catástrofe muda para experiência nomeável, e nomear, como sabemos desde os mitos, cria mundos respiráveis.
Nietzsche provoca: “quem tem um porquê enfrenta quase qualquer como”. A clínica, porém, aprende que muitos porquês são pedras amarradas ao pescoço. O porquê só ajuda quando não serve de álibi. Em análise, prefiro o como e o quando: como a dor se acende, quando ela recolhe, que palavras a inflamam, que gestos a serenam. Essa investigação, feita com lupa, exige que a pessoa analista reconheça mundos diversos de dor. Não há dor universal, como lembram Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez; há dores socialmente produzidas e diferencialmente distribuídas. A clínica que ignora o corte do racismo, da transfobia, da precariedade, da deficiência invisível, torna-se anestesia injusta. A escuta cirúrgica é inclusiva por definição: pergunta pelo corpo que a linguagem habita, pelas ruas que esse corpo pode ou não atravessar, pelas violências que se colam aos nomes. Eu, nesse ponto, desconfio de todo aparato neutro. A neutralidade, muitas vezes, é apenas privilégio com bata branca.
O efeito da distinção entre contradição e inversão aparece, enfim, no próprio curso do tratamento. Quando a pessoa é confrontada com a contradição como falha de lógica, reage com vergonha ou raiva; quando é convidada a observar a inversão como deslocamento de posição, responde com curiosidade. A curiosidade é antídoto da dor ressentida. Ela aproxima a pessoa de uma autoria possível: “posso voltar a ocupar o lugar de quem quer”, em vez de “sou a vítima do que digo”. Isso não suspende as dores históricas; apenas impede que elas monopolizem o roteiro. A palavra, manejada sem exibicionismos, transforma-se em ferramenta de microemancipação. Uma intervenção breve — “escutou o tom quando disse ‘não me importa’?” — vale mais do que um tratado. O corte é musical: ataca a nota falsa, devolve a harmonia possível.
Se a clínica é oratória íntima, o consultório é palco de silêncio bem colocado. O analista não vence discussões; abre espaços de fala para que a pessoa reconheça o timbre da própria dor sem se confundir com ela. Em termos práticos, isso se traduz em três operações: separar palavras de slogans (contra as generalizações), distinguir inversões de contradições (a favor da autoria), e instalar pausas (para que o corpo entre na frase). A educação freireana volta a iluminar: diálogo que não medeia poder vira monólogo. Por isso, a sensibilidade cirúrgica também é política: recusa versões únicas de vida boa, legitima singularidades, acolhe diferenças, e devolve a cada pessoa a possibilidade de dizer “eu” sem pedir licença a nenhum padrão.
Concluo com uma imagem: uma ferida precisa de arejamento e bordas limpas para cicatrizar. As palavras são o ar e o bisturi. O corte que interessa, aqui, não é o do espetáculo, mas o que separa dor de destino. Quando o discurso afrouxa suas amarras, a dor deixa de ser cárcere e vira bússola: aponta, orienta, não manda. Quem sabe, então, possamos praticar um amor fati sem servidão — amar o dado sem obedecê-lo, fazer da própria dor uma artesã da vida, como quem, do tecido rasgado, inventa uma nova costura.
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