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Olhar e imagem: reflexões em um espelho embaçado (crônica)

Saí do banho, a água escorrendo pelo corpo como um abraço quente que me confortava. Em um gesto automático, pulei para a frente do espelho, o vapor do calor me envolvendo. E foi ali, naquele momento efêmero de privacidade, que me perdi em um hipnotizante embate com meu próprio olhar. O espelho embaçado se tornava uma tela onde eu começava a projetar tudo aquilo que, para muitos, seria a imagem de um Deus amoroso. Mas, no meu universo ateísta, essa divindade estava longe de ser um ser superior; era uma mera construção social, uma projeção de nossas esperanças e anseios.

Nas tradições filosóficas helenísticas, como o estoicismo e o epicurismo, descortinava-se a importância do ser humano como autor de sua própria felicidade. Não precisávamos de um Deus que manipulasse nossas vidas ou nos atirasse lições morais; éramos responsáveis por nossos destinos, por encontrar significado em cada pequeno instante, como aquele que eu vivia diante do espelho. Eu não era a imagem de um Deus, mas a própria imagem de um eu que lutava contra a tristeza da existência e buscava a alegria nas coisas simples. 

A razão por trás dos nossos dias é o que nos permite caminhar em busca da felicidade. Não havia necessidade de uma figura paternal que olhasse por nós. Nossa busca era solitária, mas cheia de sentido. O filósofo Epicuro nos ensinou que a felicidade não era um prêmio no final de uma vida repleta de sacrifícios, mas um estado que poderia ser encontrado nas pequenas coisas — um copo de vinho, uma boa conversa, a beleza de um pôr do sol. 

Ao olhar para meu reflexo, pensava nas imperfeições que o constituíam. Claro, o corpo não era a imagem glorificada que todos desejavam, mas ali estava um ser humano, com seus medos, suas fraquezas, suas alegrias. O espelho me devolvia não um ideal de Deus, mas uma verdade nua e crua: a busca incessante pela autocompreensão e aceitação. Para o estoicismo, a virtude era a única verdadeira riqueza. Assim, mesmo em nossas interações cotidianas, podíamos encontrar a plenitude. 

E quando me permiti sentir a fragilidade da vida humana, percebi que essa vulnerabilidade era sua própria beleza. Afinal, o que somos senão um conjunto de experiências, memórias e reflexões? A dualidade de ter que olhar a si mesmo e, ao mesmo tempo, ser avaliado pelo mundo exterior é o que nos torna humanos. Era como as lições de Sêneca, que por meio de sua filosofia nos lembrava que, em vez de olharmos para um Deus distante, devíamos buscar o divino que reside em nosso interior.

Meu coração começou a palpitar mais forte. A música da vida ecoava ao meu redor e os sons da cidade se misturavam aos meus pensamentos. O que nos define não é a presença ou ausência de uma divindade, mas as relações que cultivamos. Não precisamos da imagem de Deus para validar nossas experiências de amor e ternura. Podemos ser tudo isso e mais, sentindo a vida pulsar nos detalhes e nas interações com aqueles que realmente importam.

O tempo continuava a passar e, como todo vapor, o embaçado do espelho começava a desaparecer, revelando reflexões mais nítidas. Eu não era uma representação de qualquer ideal cristão ou divino; eu era um ser humano buscando conexão e significado. A felicidade, assim como a definição de amor, seria única para cada um de nós, uma construção pessoal moldada pelas experiências que compartilhamos.

Com um último olhar para o espelho, deixei os vapores da água evaporarem não apenas de minha pele, mas dos meus pensamentos sobre deuses. Afinal, ao final do dia, somos nós, humanos, que tornamos o mundo mais amoroso e gentil. Não quero ser a “imagem de Deus,” mas uma imagem de amor e ternura que, embora imperfeita, ainda assim é fruto de uma vida vivida intensamente, repleta de escolhas e experiências que meu próprio coração e mente congregam. E, por essa razão, sinto-me profundamente conectado ao mundo que me rodeia.

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