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A coisa do destino (conto)

Na cidade flutuante de Aetheria, suspensa entre o céu e a terra por fios invisíveis de melodia, vivia um cartomante chamado Silas. Não um leitor de sortes comum, mas um intérprete de pressentimentos, capaz de navegar nas "águas turvas da dúvida" e vislumbrar os contornos fugazes do futuro. Silas, porém, era um enigma ambulante: suas previsões eram precisas, mas ele próprio se afogava em um mar de incertezas, um "amorodio" lacaniano por sua própria arte.

Seu ateliê, um emaranhado de cartas de tarô, astrolábios e espelhos embaçados, era um reflexo de sua alma: um caos ordenado, onde o Imaginário, o Simbólico e o Real se entrelaçavam em uma dança vertiginosa. Silas amava a clareza que suas visões proporcionavam aos outros, mas odiava a névoa que turvava sua própria existência. Ele era um farol que guiava os navios, mas se perdia em sua própria tempestade interior.

Um dia, uma mulher misteriosa, envolta em um véu de estrelas cadentes, adentrou o ateliê. Era Lyra, a personificação da Noite, uma criatura de beleza ambígua, ao mesmo tempo sedutora e melancólica. Lyra carregava consigo um enigma: ela não conseguia se lembrar de seu passado, nem vislumbrar seu futuro. Era como se sua existência estivesse suspensa em um eterno presente, um vazio existencial que a consumia.

Silas, intrigado e perturbado pela ausência de tempo na vida de Lyra, lançou as cartas. As imagens dançaram diante de seus olhos, revelando fragmentos desconexos: uma criança rindo em um jardim de lírios, uma sombra espreitando em um beco escuro, uma lágrima caindo em um oceano de esquecimento. Mas as cartas, normalmente tão claras, permaneciam mudas sobre o destino de Lyra.

A frustração de Silas crescia a cada tentativa. Ele se via como o "penetra bêbado" de Freud, tentando decifrar os enigmas do inconsciente de Lyra, enquanto o seu próprio "recalcado" se esgueirava pelas frestas de sua mente. Seria ele, Silas, apenas um "espectador de sua própria tragicomédia", incapaz de compreender a si mesmo e, portanto, incapaz de ajudar Lyra?

Em um momento de desespero, Silas confessou a Lyra sua impotência. Ele admitiu que, apesar de seu dom, ele também era um ser perdido, assombrado pela incerteza. Lyra, então, sorriu, um sorriso que iluminou a escuridão do ateliê. "Talvez", disse ela, "a ausência de futuro seja a maior liberdade. Talvez a incerteza seja o nosso estado natural, e a busca por certezas, uma ilusão."

As palavras de Lyra ecoaram em Silas como uma revelação. Ele percebeu que sua obsessão por prever o futuro era uma forma de escapar do presente, de evitar o "vazio" que o aterrorizava. Mas, como Nietzsche proclamaria, "nada é permanente, exceto a impermanência". E a própria identidade, como um rio em constante mutação, não podia ser aprisionada em um único conceito.

Silas, então, teve um insight. Ele não precisava decifrar o futuro de Lyra, mas ajudá-la a abraçar o presente. Ele rasgou as cartas de tarô, quebrou os astrolábios, estilhaçou os espelhos. O ateliê, antes um caos de símbolos, se tornou um espaço vazio, um convite ao desconhecido.

Silas e Lyra saíram do ateliê, de mãos dadas. Caminharam pelas ruas flutuantes de Aetheria, sem rumo, sem destino. A cada passo, Lyra descobria algo novo: o sabor de uma fruta exótica, o som de uma melodia desconhecida, a beleza de uma flor que desabrochava ao luar. E, a cada descoberta, fragmentos de sua memória retornavam, não como lembranças nítidas, mas como sensações, emoções, cores.

Silas, por sua vez, percebeu que a verdadeira magia não estava em prever o futuro, mas em viver o presente. Ele não era mais um cartomante, mas um companheiro de jornada, um cúmplice na arte de desvendar o instante.

E, então, aconteceu. Em meio a uma praça iluminada por vaga-lumes, Lyra parou, seus olhos brilhando intensamente. "Eu me lembro", disse ela, "eu sou a Aurora, não a Noite. Eu não perdi meu passado, eu o esqueci para poder renascer a cada amanhecer."

Silas, maravilhado, compreendeu. Lyra não era uma criatura da noite, mas do amanhecer, um símbolo da esperança, da renovação constante. E ele, Silas, não era um intérprete de pressentimentos, mas um parteiro do presente, um facilitador do despertar.

Afinal, a vida, em sua eterna impermanência, é um convite constante ao despertar, à redescoberta de si mesmo e do outro, no aqui e agora. E, nesse eterno presente, reside a verdadeira magia.

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