A histeria em cena: palco da insatisfação

A histeria, longe de ser uma relíquia do passado, persiste como um enigma fascinante no cenário contemporâneo. Este ensaio se propõe a desvendar a complexidade da histeria, indo além dos estereótipos, e explorando suas nuances à luz da psicanálise lacaniana. Investigaremos a estrutura da histeria, suas manifestações, equívocos e potencialidades, com um olhar atento aos manejos parentais e traumas da infância que contribuem para a sua formação. Adentraremos, de forma crucial, na dinâmica peculiar da histérica com o Outro: a busca incessante por "furar" o Outro, por encontrar suas falhas e inconsistências, como uma estratégia paradoxal para garantir sua própria posição.

A histeria, na perspectiva psicanalítica, não é uma doença, mas uma posição subjetiva, um modo singular de o sujeito se relacionar com o desejo e com o Outro. Freud, em seus "Estudos sobre a histeria" (1895), já destacava a importância do discurso da histérica como via de acesso ao inconsciente. A histérica, através de sintomas, queixas e performances, busca incessantemente um reconhecimento do Outro, uma resposta à pergunta angustiante: "O que o Outro quer de mim?".
Lacan, aprofundando a compreensão freudiana, situa a histeria como uma resposta ao enigma do desejo do Outro. A histérica, em sua busca por uma completude impossível, questiona o Outro, o portador do falo, numa tentativa de desvelar sua falta e, simultaneamente, ocupar o lugar de objeto de seu desejo. Nas palavras de Lacan, "o desejo da histérica é o desejo de ter um desejo insatisfeito" (LACAN, 1960-1961, p. 364). Uma insatisfação que, paradoxalmente, a sustenta.

 
A posição histérica se manifesta através de características marcantes:
  • Insatisfação Crônica: Uma sensação persistente de incompletude, como se o reconhecimento do Outro nunca fosse suficiente, alimentando um ciclo de busca incessante.
  • Questionamento do Outro: Um interrogar constante das demandas e desejos do Outro, numa tentativa de decifrar a falta e se posicionar como objeto de desejo, mas também de desestabilizá-lo.
  • Teatralidade: A dramatização das emoções e sofrimentos, transformando a vida em um palco em busca de olhares e aprovação, numa encenação que visa capturar o Outro.
  • Sedução: A utilização da sedução como ferramenta para capturar o desejo do Outro, seja pela beleza, inteligência, fragilidade ou qualquer outro atributo que possa exercer fascínio.
  • Identificação com o Outro: A busca por espelhamento e validação, especialmente com figuras de poder, numa tentativa de se apropriar de uma suposta consistência.
  • A Busca pelo Furo: E, fundamentalmente, a compulsão por encontrar falhas, inconsistências e "furos" no Outro. Essa busca não é um mero detalhe, mas um elemento central da dinâmica histérica.

O funcionamento histérico pode ser chamado de "detetive do desejo." 

Essas características se traduzem em comportamentos como:
  • Mudanças constantes de opinião para agradar, revelando a dificuldade em sustentar uma posição própria.
  • Busca incessante por aprovação, evidenciando a dependência do olhar do Outro.
  • Evitação de conflitos, que podem expor a própria fragilidade e a do Outro.
  • Queixas frequentes, visando atrair atenção e compaixão, mas também testar os limites do Outro.
  • Busca obsessiva por elogios e reconhecimento, revelando a fragilidade diante de críticas.
  • Relacionamentos amorosos conturbados, marcados por idealização e decepção, onde a queda do Outro idealizado é inevitável.

A "Detetive do Desejo": Uma observação minuciosa do Outro, buscando contradições, deslizes, qualquer sinal de fraqueza que possa ser apontado e utilizado para desestabilizá-lo.

A Histeria e o equívoco do gênero: para além do Útero
A associação histórica da histeria com o feminino é um equívoco enraizado na própria etimologia da palavra (histeros = útero). Essa associação, reforçada por discursos médicos e culturais, estigmatizou mulheres e patologizou suas emoções.
A psicanálise lacaniana rompe com essa visão essencialista. A histeria, como posição subjetiva, não é exclusiva das mulheres, mas pode ser encontrada em homens e em pessoas de qualquer identidade de gênero. O que define a histeria não é o sexo biológico ou a identidade de gênero, mas a relação com o desejo e o Outro.
A maior incidência histórica de diagnósticos de histeria em mulheres se deve, em grande parte, a fatores socioculturais que reprimiam a sexualidade e o desejo feminino, levando muitas a expressarem seus conflitos através de sintomas histéricos.

Os Traços Perversos na Histeria: A Manipulação e o Gozo no Furo
A histeria, em sua busca por reconhecimento e por ocupar o lugar de objeto do desejo do Outro, pode apresentar traços perversos, no sentido de uma manipulação do Outro para atingir seus objetivos. Essa manipulação, muitas vezes inconsciente, se manifesta em estratégias de sedução, vitimização e controle.
O vitrinismo se revela na exposição dos sofrimentos e fragilidades, buscando atrair compaixão e despertar o desejo do Outro, colocando-o em posição de dívida. O estrelismo é a busca incessante por atenção, transformando a vida em um espetáculo onde a histérica é a protagonista, buscando admiração e inveja para alimentar seu narcisismo.
Mas é na busca pelo furo que a dimensão perversa da histeria se torna mais evidente. Ao encontrar a falha no Outro, a histérica experimenta um gozo peculiar, um prazer paradoxal em desestabilizar o Outro, em destituí-lo de sua suposta consistência. Esse gozo não é um prazer simples, mas um misto de satisfação e angústia, pois ao mesmo tempo em que "fura" o Outro, a histérica se depara com a própria falta, com o vazio que ela tenta, em vão, preencher.

Características de Homens Histéricos: A Performance da Masculinidade:
Homens histéricos também buscam atenção e reconhecimento, dramatizam emoções, utilizam a sedução e necessitam ser o centro das atenções. Apresentam insatisfação crônica, queixas constantes e dificuldade em lidar com críticas. Idealizam e desqualificam o Outro, manipulam sutilmente, identificam-se com figuras de poder e tendem a relacionamentos conturbados. Em homens, a histeria pode se manifestar através de uma performance exagerada da masculinidade, uma tentativa de se adequar a um ideal viril, mas que revela, em seu exagero, a fragilidade subjacente.

A potência da Histeria:
A histeria, apesar de seus aspectos problemáticos, também possui atributos virtuosos que podem ser potencializados na clínica psicanalítica. A curiosidade e o questionamento, inerentes à busca histérica, podem ser direcionados para a construção de um saber próprio.
A criatividade, expressa na busca por novas formas de sedução, pode encontrar soluções originais. A empatia, nascida da sensibilidade ao desejo do Outro, permite compreender as emoções alheias. A paixão, manifesta na intensidade emocional, impulsiona a entrega a projetos. A resiliência, forjada na capacidade de se reinventar, permite superar obstáculos. E, fundamentalmente, a capacidade crítica, inerente à busca pelo furo no Outro, pode se transformar em um olhar aguçado sobre o mundo, sobre as relações e sobre si mesmo.

A infância, com suas vivências e relações, é crucial na constituição da subjetividade e na formação dos traços histéricos. Manejos parentais inadequados e experiências traumáticas podem contribuir para o desenvolvimento dessa posição subjetiva.

O Olhar do Outro (Fragmentado): Um olhar parental excessivamente crítico, exigente, indiferente ou inconsistente pode gerar na criança uma sensação de inadequação e uma busca incessante por aprovação. A criança pode se sentir "invisível" ou "nunca boa o suficiente", alimentando a insatisfação crônica. A falta de um olhar que a reconheça como sujeito desejante contribui para a busca por esse reconhecimento no Outro, de forma incessante e, muitas vezes, disfuncional.

A Sedução e a Sedução Traumática: A sedução excessiva por parte dos pais, a erotização precoce da criança ou o abuso sexual podem ser traumáticos e contribuir para a formação do traço histérico. A criança aprende a utilizar a sedução para obter atenção, mas de maneira disfuncional.

A Falta e o Excesso (do Outro): Tanto a falta quanto o excesso de cuidados parentais podem ser prejudiciais. A falta de afeto, atenção e limites gera desamparo e busca por preencher o vazio. O excesso de cuidados sufoca a autonomia e a capacidade de lidar com a frustração. Em ambos os casos, a criança desenvolve uma relação problemática com o desejo e o Outro.

O Trauma e a Repetição: Experiências traumáticas, como perda, violência, bullying ou negligência, deixam marcas profundas. Essas marcas podem se manifestar em sintomas histéricos, como forma de expressar o sofrimento. A repetição de padrões disfuncionais pode ser uma tentativa inconsciente de elaborar o trauma.

A Falta de um Outro Consistente: Talvez o fator mais crucial seja a ausência de um Outro (geralmente os pais) que se apresente como consistente, como alguém que sustente a lei, que diga "não" quando necessário, que suporte a frustração da criança. Essa falta de um Outro consistente, que possa ser "furado" de forma simbólica, leva a criança a buscar essa consistência de forma desesperada e, paradoxalmente, a desejar a sua queda.


Na clínica psicanalítica, o objetivo não é "curar" a histeria, mas auxiliar a pessoa a compreender sua forma de funcionamento, a lidar com seus conflitos, a ressignificar traumas e a potencializar seus atributos. A análise permite que a histérica se aproprie de seu desejo, que o transforme em força criativa e que construa relações mais autênticas.
O analista, através da escuta e da interpretação, ajuda a pessoa a desvendar os nós inconscientes que a prendem à repetição, a dar novo sentido às suas vivências e a construir uma nova narrativa. A análise não é "conserto", mas criação, invenção de novas formas de ser.
E, fundamentalmente, a análise permite que a histérica se depare com seu próprio "furo", com a sua própria falta, com o vazio que a constitui como sujeito desejante. Ao invés de buscar incessantemente o furo no Outro, a histérica é convidada a olhar para o seu próprio furo, a reconhecê-lo e a lidar com ele de forma mais criativa e menos angustiante.

O Século XXI: Uma Era Histérica?
A afirmação de que o século XXI é uma era histérica se justifica pela cultura contemporânea, marcada pela exposição nas redes sociais, pela busca incessante por reconhecimento e pela valorização da imagem e da performance.
A busca por "likes", seguidores e aprovação virtual é uma encenação histérica, onde o sujeito busca o olhar do Outro para se sentir validado. A cultura do "cancelamento" revela a fragilidade narcísica da histeria, abalada por críticas.
No entanto, a histeria não é exclusiva do século XXI. Ela sempre existiu, sob diferentes formas. O que muda são as formas como o desejo se expressa e como o sujeito se relaciona com o Outro.

Considerações finais: 
A histeria, longe de ser uma patologia a ser eliminada, é um enigma a ser decifrado, um desafio a ser enfrentado, um caminho a ser percorrido, uma possibilidade a ser explorada e, acima de tudo, um furo a ser assumido. A psicanálise nos convida a mergulhar na complexidade do desejo humano, a questionar estereótipos, a desvendar traumas e a buscar novas formas de compreensão.
A histeria, em sua busca pelo desejo do Outro e pelo furo que o desestabiliza, revela a potência e a fragilidade do sujeito. Cabe a nós, analistas, acolher essa complexidade, sem julgamentos, e auxiliar o sujeito a construir um caminho próprio, onde o desejo possa se expressar de forma livre, criativa e autêntica, reconhecendo e assumindo o seu próprio furo, a sua própria falta constitutiva.

Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1895) Estudos sobre a histeria. Obras completas, ESB, v. II. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. (1960-1961) O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
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