"Com o pai que eu tive, não podia ser tão diferente..."
A ideia desse texto é pensar sobre O Pai, a Lei e, com esperança, na liberdade possível diante do que é dado/cobrado sem permissão prévia. E faremos isso em uma reflexão psicanalítica sobre a herança simbólica.
A canção de Vanessa da Mata, com seu verso aparentemente singelo – "Com o pai que eu tive, não podia ser tão diferente..." – desvela a complexa teia de influências, determinações e possibilidades que se entrelaçam na constituição do sujeito. A figura paterna, aqui, transcende a dimensão biológica e se erige como um significante poderoso, carregado de nuances e implicações que moldam a trajetória individual.
O Pai como Lei: A Inscrição do Simbólico
Na psicanálise, o pai não é apenas o genitor, mas a função simbólica que introduz o sujeito na ordem da cultura, da linguagem e da lei. Como afirma Lacan, "o nome-do-pai é o suporte da função simbólica que, desde o limiar da história, identifica sua pessoa à figura da lei" (LACAN, 1998, p. 27). É o pai, como representante do Nome-do-Pai, que interdita o gozo incestuoso com a mãe, instaurando a castração simbólica e permitindo o acesso ao desejo. Essa função paterna, no entanto, não se restringe à figura do pai real, podendo ser encarnada por outros elementos, como a mãe, um professor ou até mesmo uma instituição.
Freud, em "Totem e Tabu" (1913), já havia explorado a função do pai na formação da cultura e da moralidade. Ele argumenta que a horda primeva, liderada por um pai tirânico e onipotente, é a origem da sociedade e da lei. Os filhos, ao se rebelarem contra o pai e assassiná-lo, instauram o tabu do incesto e a lei da exogamia, marcando a passagem da natureza para a cultura.
O Pai como Equação da Validação: A Busca pelo Reconhecimento
O verso de Vanessa da Mata sugere que a influência paterna, para além da função de lei, pode se manifestar como uma "equação da validação". O sujeito, nesse caso, busca incessantemente no olhar do pai (ou de suas figuras substitutas) a confirmação de seu valor. Essa busca por validação externa pode se tornar uma prisão, como aponta Juliet Mitchell em "Psicanálise e Feminismo" (1974): "A necessidade de aprovação paterna pode se tornar um fardo vitalício, impedindo a mulher de desenvolver sua própria autonomia e autoconfiança".
A necessidade de aprovação paterna, quando exacerbada, revela uma falha na inscrição da lei simbólica, uma dificuldade em reconhecer o próprio valor, como bem coloca Roudinesco (2001): "O sujeito se torna refém do olhar do Outro, buscando desesperadamente um reflexo que lhe confirme sua existência" (p. 45).
A Aceitação como Abertura ao Possível: Para Além da Conformidade
A psicanálise nos ensina que a superação dessa dependência do olhar paterno passa por um processo de aceitação. Nasio (1995) destaca: "Aceitar o pai é aceitar a própria história, com suas dores e possibilidades" (p. 89). Aceitar o pai, não é concordar com ele, mas integrar sua influência, para a partir daí criar um caminho próprio e singular.
A Extração da Saída: A Subversão da Lei Paterna
A aceitação do pai, como vimos, não implica em uma submissão passiva à lei paterna. Safatle (2006), inspirado em Lacan, argumenta que a verdadeira liberdade surge da capacidade de "subverter a lei, não no sentido de negá-la, mas de reinventá-la, de dar-lhe um novo significado a partir da própria experiência" (p. 122). A psicanálise nos convida a subverter a lei paterna, ou, dito de outro modo, a fazer dela outra coisa, uma "bricolagem" que nos sirva e não que nos prenda.
Herança como Ponto de Partida, Não como Destino
O verso de Vanessa da Mata, "Com o pai que eu tive, não podia ser tão diferente...", nos convida a refletir sobre a complexa relação entre a herança simbólica e a construção da subjetividade. Contudo, como nos lembra Slavoj Žižek (2011), "a herança não é um destino, mas um ponto de partida" (p. 57). A psicanálise, com sua ética do desejo, nos ensina a aceitar a herança paterna, não como um fardo, mas como uma base para a construção de algo novo, singular e livre.
- Referências Bibliográficas:
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu (1913).
LACAN, Jacques. Escritos (1998).
MITCHELL, Juliet. Psicanálise e Feminismo (1974).
NASIO, Juan-David. Cinco Lições sobre a Teoria de Jacques Lacan (1995).
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a Psicanálise? (2001).
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica (2008).
ŽIŽEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas (2011).
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