Da conversão histérica à psicossomática: o que o corpo tem a dizer?

Introdução:  

A conversão histérica, um conceito central na teoria psicanalítica, destaca a relação complexa entre o psíquico e o somático, ou seja, entre a mente e o corpo. Desde os primeiros estudos de Freud sobre a histeria, o corpo é reconhecido como um espaço onde conflitos inconscientes se manifestam de forma enigmática. Este ensaio explorará a conversão histérica, começando com a análise de Freud, passando pela interpretação de Lacan e suas implicações nas pesquisas contemporâneas sobre doenças psicossomáticas. Discutiremos como a conversão se forma na infância, como se manifesta na vida adulta, a complexidade da transferência clínica nesses contextos, e apresentaremos cinco estratégias clínicas, acompanhadas de um estudo de caso detalhado.

A conversão histérica em Freud:

Em "Estudos sobre a Histeria" (1893-1895), Freud, juntamente com Josef Breuer, encontrou pacientes – principalmente mulheres – exibindo sintomas físicos sem explicações médicas na época, como paralisias e cegueiras. Através de diversas técnicas terapêuticas, Freud identificou que esses sintomas eram manifestações de conflitos psíquicos recalcados.

Para Freud, a conversão histérica é um mecanismo de defesa em que a energia psíquica ligada a um conflito recalcado é "convertida" em sintomas físicos. Assim, o conflito psíquico se manifesta no corpo como sintoma, funcionando como uma linguagem cifrada que o analista deve decifrar. Freud descreve esse fenômeno como "um salto do mental para o somático".

A famosa paciente conhecida como Anna O. apresentava uma tosse nervosa que estava ligada a um trauma em sua vida familiar. Este sintoma físico era a manifestação de um conflito interno, simbolizando seu desejo de expressar angústia em um contexto em que o silêncio era a norma. Essa conversão de emoção em sintoma nos leva a refletir: como as experiências traumáticas que reprimimos podem se manifestar em nossos corpos?

Freud enfatiza a "complacência somática", a predisposição de certas partes do corpo a expressar sintomas de acordo com a história individual do sujeito. Cada sintoma histérico, portanto, carrega um significado que remete à trajetória de vida e aos conflitos inconscientes do indivíduo. Como Freud observa, "o sintoma histérico é o símbolo mnêmico de certas impressões e experiências traumáticas".

A conversão em Lacan: 

Lacan, ao retomar as ideias de Freud, aprofunda a noção de conversão histérica, ligando-a à sua teoria do significante e ao inconsciente estruturado como linguagem. Para ele, o corpo é um organismo não apenas biológico, mas também um corpo que fala, impregnado pela linguagem.

Na visão lacaniana, a conversão não é apenas um "salto" do psíquico para o somático, mas uma inscrição do significante no corpo. O sintoma histérico é uma metáfora, que representa um compromisso entre o desejo inconsciente e a defesa. É uma mensagem que o sujeito comunica ao Outro de uma maneira que não pode ser verbalizada de outra forma. Lacan afirma que "o sintoma histérico é uma metáfora onde a carne é tomada como elemento de fraseado".

Uma paciente que relata formigamento nas mãos pode estar simbolizando a dificuldade de estabelecer contato emocional com um pai autoritário. O sintoma, assim, torna-se uma metáfora para o desejo não realizado de se conectar. Isso nos leva a questionar: quanto de nossas sensações corporais carrega o peso de nossas relações e experiências não ditas?

Lacan propõe o conceito de "corpo erógeno", que é moldado por experiências de prazer e sofrimento, revelando que o sintoma se inscreve nesse corpo erógeno como reflexo da história pessoal. Como lembra Lacan, "o corpo erógeno é o corpo marcado pelo gozo".

Da infância à vida adulta:

A formação da conversão histérica remete à infância, às primeiras experiências do sujeito com o Outro, e aos conflitos vividos. Durante esse período, a criança aprende a "ler" as emoções e os desejos do Outro, o que pode resultar em uma relação problemática com seu próprio desejo e corpo.

Ambientes familiares que não expressem emoções podem levar a criança a reprimir sentimentos, resultando, na vida adulta, em doenças físicas como dores de cabeça ou problemas gastrointestinais quando não conseguem externalizar seu sofrimento. Essa relação nos faz indagar: quais marcas nossas experiências de infância deixaram em nossas vidas adultas?

Traumas, especialmente os de ordem sexual, podem deixar cicatrizes profundas, fazendo com que a criança não elabore simbolicamente a dor, mas a carregue em seu corpo. Na idade adulta, esses traumas podem resultar em uma variedade de problemas, perpetuando padrões relacionais estabelecidos na infância e buscando, muitas vezes, no Outro o reconhecimento perdido.

Doenças psicossomáticas e conversão: 

As doenças psicossomáticas, que investigam a ligação entre fatores psicológicos e a manifestação de doenças físicas, oferecem uma perspectiva que dialoga com a teoria da conversão de Freud. Embora a conversão histérica seja caracterizada por sintomas sem lesões orgânicas, doenças psicossomáticas envolvem alterações físicas comprováveis.

Para a psicanálise, tanto a conversão histérica quanto as doenças psicossomáticas são expressões de um sofrimento psíquico que aparece no corpo. A diferença está nos mecanismos de defesa utilizados. Enquanto na conversão histérica predomina o recalque, nas doenças psicossomáticas, pode haver a clivagem, negação, entre outros. Isso nos leva a pensar: como reconhecemos que os sintomas físicos que sentimos têm suas raízes em conflitos emocionais?

A pesquisa em psicossomática busca identificar fatores de personalidade e eventos estressantes que podem contribuir para a doença, enquanto a psicanálise foca na história individual e na relação com o Outro.

A transferência clínica:  

Na prática da psicanálise, a transferência é essencial, pois representa a reprodução de padrões estabelecidos na infância na relação com o analista. O paciente projeta seus sentimentos e expectativas no analista, o que pode se manifestar de diversas maneiras.

Em casos de conversão histérica, o sujeito frequentemente busca uma atenção intensa e, ao mesmo tempo, pode resistir ao processo analítico. O analista precisa estar atento aos sinais corporais que "falam" e entendê-los como parte da linguagem do inconsciente. Como Nasio descreve, "o analista escuta o inconsciente no corpo". Isso levanta a pergunta: até que ponto estamos dispostos a ouvir e decifrar as mensagens que nossos corpos nos enviam?

Cinco manejos possíveis

  1. Escuta atenta do corpo: O analista deve observar não apenas as palavras do paciente, mas também suas manifestações corporais. O corpo pode ser um texto enigmático a ser decifrado. Como observar o que é dito entre as linhas?

  2. Construção da história singular: O paciente precisa ser auxiliado a narrar sua história e identificar eventos cruciais que moldaram seu sofrimento. Por que a compreensão da própria história é fundamental na análise?

  3. Interpretação do sintoma como metáfora: O analista deve ajudar o paciente a interpretar o significado do sintoma, uma forma de expressão do inconsciente. O que as nossas dores podem nos ensinar sobre nós mesmos?

  4. Elaboração da transferência: O analista ajuda o paciente a compreender suas emoções e demandas projetadas na relação analítica. Como as nossas interações atuais refletem padrões do passado?

  5. Articulação entre palavra e corpo: O analista deve conectar a verbalização do paciente com suas manifestações corporais, ajudando-o a entender suas emoções. Como a verbalização pode transformar o seu sentir?

Estudo de Caso: 

Verônica, uma mulher de 35 anos, procura análise por causa de dores crônicas na região lombar, que se intensificam em momentos de estresse. Nenhum exame aponta alterações orgânicas. Verônica se descreve como uma pessoa ansiosa, perfeccionista e controladora, com dificuldades em expressar emoções, especialmente raiva e tristeza.

Na infância, Verônica se esforçou para agradar a uma mãe exigente e crítica, sentindo-se frequentemente inadequada. O pai, por sua vez, era distante. Ela "engolia" suas emoções. Durante sua adolescência, enfrentou um relacionamento abusivo que a deixou presa. Esses episódios podem ter contribuído para a manifestação das dores lombares. Isso nos leva a considerar: como nossas relações familiares moldam a maneira como lidamos com nossas emoções?

Durante a análise, Verônica demonstrou resistência e desconfiança inicialmente, mas, conforme falava de suas experiências, começou a narrar por si a sua própria história e a supor as raízes do seu sofrimento. As dores foram interpretadas como uma metáfora de sua carga emocional, simbolizando a raiva e a tristeza que não conseguiu expressar.

Ao longo do tratamento, Verônica se tornava mais consciente de suas necessidades e emoções, aprendendo a se posicionar de maneira mais assertiva. À medida que ela se apropriava de sua corpuosidade, as dores diminuíam. Isso nos faz refletir: como a expressão de nossos sentimentos pode levar a mudanças significativas em nossas vidas?

Considerações provisórias: 

Quão disposto estamos a ouvir o que o corpo tem a dizer? A conversão histérica e as doenças psicossomáticas ilustram a complexa relação entre mente e corpo. O corpo é um espaço de comunicação, onde nossa história é contada por meio de sinais somáticos. Na prática clínica, a escuta atenta permite decifrar essa comunicação, transformando o corpo em um instrumento de expressão e renovação.

A clínica psicanalítica nos convida a explorar a linguagem do corpo, interpretando os sofrimentos e buscando novas significações nas experiências de vida. 

Referências Bibliográficas

  • FORBES, Jorge. Da palavra ao gesto do analista. São Paulo: Annablume, 2013.
  • FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria (1893-1895). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. II.
  • JULIEN, Philippe. O Manto de Noé: Ensaio sobre a Paternidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
  • LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
  • LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
  • MILLER, Jacques-Alain. Biologia lacaniana e acontecimentos do corpo. Belo Horizonte: Scriptum, 2005.
  • NASIO, Juan-David. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
  • QUINET, Antonio. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
  • ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise?. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Questões respondidas sobre Platão - Por prof. Ítalo Silva

Questões respondidas sobre o Iluminismo

Questões respondidas sobre os Sofistas – Por Professor Ítalo Silva