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Não-me-esqueças (conto)

Na cidade de Chronos, onde o tempo era um rio sinuoso e caprichoso, vivia um relojoeiro chamado Arthur. Não um relojoeiro comum, mas um artífice das horas, capaz de manipular os ponteiros do destino com a delicadeza de um maestro regendo uma sinfonia cósmica. Arthur, contudo, era um homem de paradoxos: criava relógios que desafiavam a linearidade temporal, mas aprisionava-se em um ciclo de melancolia e saudade, um eterno retorno nietzschiano de afetos perdidos.

Sua oficina, um labirinto de engrenagens douradas e espirais prateadas, era um portal para outras dimensões. Ali, entre pêndulos que oscilavam entre o passado e o futuro, Arthur buscava reencontrar Elara, sua amada, que se perdera em uma fenda temporal durante um eclipse lunar. Elara, uma pintora de auroras boreais e constelações imaginárias, era a personificação da Fantasia, a musa que dava cor ao mundo monocromático do relojoeiro.

Em sua busca obsessiva, Arthur criou o Chronarium, um relógio quântico capaz de aprisionar fragmentos de tempo. Em cada engrenagem, ele encapsulava momentos vividos com Elara: risadas, beijos roubados, promessas sussurradas. Mas o Chronarium era também um espelho cruel, refletindo a ausência, a falta que se tornava um abismo intransponível, o Real lacaniano que se impunha sobre o Simbólico.

Um dia, adentrou a oficina uma figura enigmática, envolta em um manto de sombras. Era Nyx, a guardiã da noite e do inconsciente, uma criatura ambígua, sedutora e aterrorizante, a própria representação do vazio primordial. Nyx ofereceu a Arthur um pacto: em troca de sua alma, ela o levaria até Elara.

Arthur, cego pela dor da perda e pela ilusão do reencontro, hesitou. A proposta de Nyx era um mergulho no nada, na "devassidão do desamparo", como ele mesmo definira. Mas a perspectiva de reviver o amor, de preencher o vazio com a presença de Elara, era tentadora demais. Seria essa a sua "vontade de potência", o impulso vital que o levaria a superar a si mesmo, ou apenas uma fuga desesperada do Real?

Enquanto Arthur ponderava, o Chronarium começou a vibrar, emitindo uma luz intensa. As engrenagens giravam freneticamente, liberando os fragmentos de tempo aprisionados. A oficina se inundou de imagens espectrais: Elara sorrindo, Elara pintando, Elara dançando sob a lua. E, então, uma voz ecoou: "Arthur, não se entregue à sombra! O amor não é posse, mas liberdade. A saudade é a prova de que o afeto existiu, e isso é eterno."

Era Elara, sua imagem translúcida flutuando no ar. Mas não era a Elara que Arthur buscava. Era a Elara transformada, liberta da prisão do tempo, uma entidade etérea, parte do fluxo universal. "Eu estou em cada pôr do sol, em cada estrela que brilha, em cada batida do seu coração", disse ela. "Não me procure no passado, mas em cada instante presente."

Arthur, então, compreendeu. A verdadeira magia não estava em reverter o tempo, mas em aceitar a sua impermanência. A falta, o vazio, não eram inimigos a serem combatidos, mas parte inerente da existência, o útero de onde renasce a memória, a força que impulsiona a vida.

Com um gesto, Arthur destruiu o Chronarium. As engrenagens se desfizeram em pó, liberando os fragmentos de tempo, que se dissiparam como estrelas cadentes. Nyx, surpresa e frustrada, desapareceu nas sombras, levando consigo a proposta tentadora e vazia.

Arthur, agora livre da obsessão pelo passado, sorriu. Olhou para o céu noturno, salpicado de estrelas, e sentiu a presença de Elara em cada cintilação. Ele não precisava mais de relógios mágicos ou pactos sombrios. O amor, a saudade, a memória, tudo isso estava dentro dele, pulsando em seu coração, em sua alma.

Na manhã seguinte, ao abrir a oficina, Arthur encontrou sobre a bancada um pequeno broto, que havia nascido entre os destroços do Chronarium. Uma flor de miosótis, a flor do "não-me-esqueças", um símbolo singelo, mas poderoso, do amor que transcende o tempo e a morte. A flor não era mágica, não era um portal para outra dimensão. Era apenas uma flor, mas, para Arthur, era a prova de que a vida, em sua cíclica brutalidade, sempre encontra um caminho para florescer, mesmo nos escombros do passado. E, naquele instante, Arthur soube que ele, assim como a flor, também renascera. Ele era, agora, um relojoeiro do presente, um artífice da esperança.

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