O Campo do Não-Julgamento- expressar o inexprimível
Existe uma frase enigmática de Rumi, o poeta místico sufi do século XIII, que estabelece uma reflexão que pode ser vista fora das barreiras do tempo e da cultura, já que faz um convite para pensar sobre a existência do julgamento moral e da experiência transcendental.
Ela diz:
"Além das ideias de delito e a boa ação existe um campo.
Te encontro lá.
Quando a alma se deita naquela grama o mundo está cheio demais para falar sobre ele."
(RUMI, 2000, p. 45).
Rumi, como expoente do sufismo, um ramo místico do Islã, buscava, através da poesia, da música e da dança, a conexão com o Divino, a dissolução do ego individual na vastidão do Ser. O sufismo enfatiza a experiência direta e pessoal do que é considerado como amor divino, a busca pela verdade interior e a transcendência das limitações do mundo material. E isso parece uma proposta muito interessante. Vejamos...
Como afirma Nicholson (1921), "o sufismo é um caminho de amor, um caminho de devoção, um caminho de êxtase" (p. 23). Talvez por isso que a "embriaguez" do amor, a "loucura" da paixão divina, são temas recorrentes na poesia de Rumi, que utiliza metáforas e paradoxos para expressar o inexprimível.
A ideia de um "campo" que se situa "além das ideias de delito e a boa ação" se encontra em diversas tradições filosóficas e espirituais. Claro que jamais tão claro de mais por sempre se encontrar com o silêncio de mistérios. Alguns provisórios. Outros substituindos...
Nietzsche (1886/2005), em "Além do Bem e do Mal", propõe algo chamado de "transvaloração de todos os valores", a audaciosa proposta de uma superação da dicotomia entre bem e mal, e a afirmação da vida em sua totalidade. Tarefa difícil, em? É preciso considerar várias camadas de desfazelamentos do Ego para o mínimo disso...
A filosofia oriental, em particular o taoísmo e o zen-budismo, também enfatiza a importância de transcender as dualidades, de alcançar um estado de não-julgamento. Como nos lembra Watts (1957), "o zen não busca a 'boa ação' nem evita o 'delito', mas busca a libertação da mente dualista" (p. 78).
A psicanálise, por sua vez, oferece uma chave de leitura provocante para essa metáfora de Rumi. O inconsciente, grande preâmbulo teórico do Freud, pode ser compreendido como esse "campo" que se situa além das categorias da moralidade consciente. Freud (1923/1996) afirma que "o inconsciente é o verdadeiro psíquico; sua natureza interna é tão desconhecida para nós quanto a realidade do mundo externo" (p. 213). E tudo assim se torna interessante de consideração já que, imagine... No inconsciente, não há julgamento, não há censura, não há repressão; os desejos se manifestam sem a mediação da razão ou da moral. No inconsciente, território livre das amarras da consciência, os desejos emergem em sua forma mais pura e autêntica, despidos das máscaras sociais e das restrições morais impostas pela cultura, revelando a natureza primordial e muitas vezes caótica da psique humana.
As religiões, as ocidentais sobretudo, historicamente, surgem frutificado de uma tentativa de domesticar essa força indomável do inconsciente. E como? Simplesmente lhes oferecendo um conjunto de regras, dogmas e rebocados nos rituais que visam a controlar os impulsos e a direcionar os desejos para fins socialmente aceitáveis, frequentemente sob a égide de um Deus legislador. Uma atraente proposta de auto regulação do que prescreve.
Essa domesticação, no entanto, não é isenta de violência inclusive simbólica, pois implica na repressão de uma parte fundamental da subjetividade, gerando um conflito permanente entre a natureza pulsional do indivíduo e as exigências da ordem social, conflito este que se manifesta, muitas vezes, na forma de ódio e intolerância. Pontos esses que, vale pontuar, são bem fertilizados nos últimos anos em territórios ocidentais e nos ocidentalizados, né?
A ocidentalização burguesa substancialmente, com sua ênfase na razão, na produtividade e no controle, intensifica essa repressão do inconsciente, utilizando a religião e outras instituições (como a família, a escola e o Estado). Assim, como ferramentas de alienação, é capaz de enjaular o sujeito em um sistema maniqueísta que o impede de acessar a riqueza e a complexidade de sua própria experiência, levando a uma crescente polarização e a busca de "culpados" para as mazelas do mundo. Enquanto discutem os culpados distraem os olhares possível para ajustamentos e soluções.
A experiência psicanalista, de alguma forma também, é uma direção a explorar esse "campo" do inconsciente. Laplanche e Pontalis (1967/1988) destacam que "a cura, na psicanálise, não passa pela eliminação dos 'delitos', mas pela integração dos conteúdos inconscientes" (p. 98). Trata-se de uma jornada de aceitação da própria complexidade e, consequentemente, de construção de um novo equilíbrio psíquico.
O verso final de Rumi – "Quando a alma se deita naquela grama o mundo está cheio demais para falar sobre ele" – talvez sugere que a experiência desse "campo" é inefável... indizível. Essa experiência do inefável é central em diversas tradições místicas, espirituais e religiosas. Eliade (1949/1992) observa que "o silêncio é a linguagem do sagrado, a expressão da transcendência" (p. 154). O silêncio, ferramenta dos sábios e analistas lacanianos, buscando propositalmente na meditação, inclusive na procura de exercícios de contemplação. As variações de silêncios, em geral, são práticas que visam a aquietar a mente e abrir espaço para a experiência direta do Real.
A frase de Rumi, naquilo que apela à transcendência, religiosamente pode ser entendida como um chamado a ir além das limitações do pensamento dualista que impera na linhagem e pela linguagem que programa nosso funcionamento. É incrível como que, nessa lição, tanto a poesia de Rumi, a filosofia de Nietzsche, a também psicanálise de Freud, cada uma a seu modo é claro, nos apontam para essa direção:
a necessidade de ir além das aparências, se expressar nesse encontro, e consequentemente, questionar as verdades estabelecidas.
No "campo" além das dicotomias morais, onde o julgamento cessa e a alma silencia, reside um "nada" primordial, um vazio que pode ser fértil, e nisso que, paradoxalmente, nos confronta com a totalidade da existência, despojando-nos das ilusões do ego e das construções sociais que limitam nossa percepção da realidade.
É nesse encontro com o "nada", com a ausência de significado pré-estabelecido e de amarras identitárias, que emerge a genuína liberdade: não uma liberdade 'para' fazer algo, mas uma liberdade 'de' ser, uma abertura radical para a criação de sentido, para a invenção de si mesmo e para o melhor de improviso para o imprevisível da vida, sem uma tanto, talvez, das correntes do passado ou as expectativas do futuro.
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Referências Bibliográficas:
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. (Originalmente publicado em 1949).
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id (1923). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIX.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1988. (Originalmente publicado em 1967).
NICHOLSON, Reynold Alleyne. The Mystics of Islam. London: G. Bell and Sons, 1921.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. (Originalmente publicado em 1886).
RUMI, Jalaluddin. The Essential Rumi. Tradução de Coleman Barks. New York: HarperCollins, 2000.
WATTS, Alan. The Way of Zen. New York: Pantheon Books, 1957.
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