O dilema entre a solidão e a falsidade - ensaio
Vamos pensar um pouco sobre a distância como virtude e a hipocrisia como farsa? O objetivo é apreciar uma reflexão sobre a criação da autenticidade nas relações humanas. Para tanto eu também vou apresentar um breve estudo de caso.
Introdução:
Em um mundo obcecado pela conexão e pela inclusão, onde as redes sociais ditam o ritmo das interações e a pressão para pertencer a grupos se torna avassaladora, surge um questionamento crucial: é preferível a solidão da distância honesta à companhia da aproximação hipócrita? Esta tese propõe-se a explorar essa dicotomia, argumentando em favor da autenticidade, mesmo que isso implique em afastamento, em detrimento da falsidade das relações baseadas em conveniência e dissimulação. Para tal, utilizaremos referências teóricas e um estudo de caso que ilustra a problemática na vida de um adolescente.
A honestidade brutal da distância vs. a doçura envenenada da hipocrisia
A distância física, frequentemente e atualmente estigmatizada como um abismo a ser evitado, como um sinal de fracasso nas relações, pode, na verdade, ser um refúgio sagrado para a sacralidade de si mesmo, um santuário onde a honestidade floresce. Ao nos afastarmos daqueles com quem não compartilhamos uma sintonia genuína, daqueles cujos espíritos não vibram na mesma frequência que o nosso, não estamos, de forma alguma, fugindo da vida ou das relações. Pelo contrário, estamos nos protegendo do lento e doloroso desgaste emocional de sustentar máscaras, de representar papéis que não nos cabem, de nos submetermos a interações que nos violentam sutilmente.
Essa distância, longe de ser um ato de egoísmo ou o famigerado narcisismo, é um ato de autopreservação, naquilo que é enquanto um gesto de amor-próprio. É um escudo? Claro . Um a boa defesa que erguemos contra a corrosão causada pela falsidade, pela hipocrisia, pela falta de autenticidade que, infelizmente, permeiam tantas interações sociais. Digo tantas na vontade de dizer que são númeroas e fortes. É um "não" corajoso àquilo que nos oprime, àquilo que nos diminui, àquilo que nos afasta de quem realmente somos.
Jean-Paul Sartre (1943/2015, p. 68), em sua obra "O Ser e o Nada", nos apronta uma frase que implica como um trovão na tempestade desse reflexão: "O inferno são os outros". Mas, atenção! Essa não é uma apologia ao isolamento, um convite à reclusão em uma torre de marfim. Sartre, com sua filosofia existencialista, não está negando a importância das relações humanas. Muito pelo contrário. Ele está, sim, nos alertando para o perigo da convivência forçada, da submissão a olhares que nos objetificam, que nos reduzem a rótulos, que nos aprisionam em expectativas que não são nossas. Isso sim sustenta um laço forte de relação ao outro e com o outro.
A convivência desprovida de autenticidade, a convivência baseada em conveniências, em jogos de poder, em falsas aparências, é um palco de representações vazias, onde a alma se esvai em posições que não lhe pertencem. Isso é praticamente insuportável, mas bastante suportável para muita gente. É um teatro de sombras, onde a verdade se esconde nos bastidores, onde a espontaneidade é sufocada, onde a singularidade é silenciada. Lógico que a saída é sairmos disso de alguma forma, mas de qual forma?
A aproximação hipócrita, por sua vez, é como um fruto de aparência irresistível, mas que, ao ser mordido, revela um veneno amargo e corrosivo. No início, ela pode nos seduzir com a promessa de aceitação, com a ilusão de pertencimento, com o afago superficial de relações que se sustentam em conveniências, em interesses mútuos, em jogos de espelhos distorcidos. Mas, a que preço?
Essa aproximação forçada, essa busca desesperada por validação externa, é uma armadilha que nos aprisiona em um ciclo vicioso de falsidade, onde a autoimagem se fragmenta, onde a autoestima se esvai, onde a confiança em si mesmo se desfaz. A validação externa, conquistada à custa da nossa verdade interior, é como um castelo de areia que desmorona ao menor sopro de vento. E, por mais tardado, o vento sobrará... Ela não preenche o vazio que a ausência de autenticidade escava em nós. Pelo contrário, não é mesmo? Ela o aprofunda!
Então é sobre... a distância, quando escolhida com consciência, quando motivada pela busca da honestidade nas relações, não é um sinal de fraqueza, mas sim de força. É um ato de coragem, um ato de amor-próprio, um ato de respeito por si mesmo e pelo outro. É um convite a construir relações mais verdadeiras, mais profundas, mais significativas, onde a a gente possa se expressar livremente, sem máscaras, sem disfarces, sem medo de ser quem realmente é.
Em palavras curtas:
A distância não é um abismo, mas um santuário.
A honestidade nas relações é um ato de autopreservação.
O inferno não são os outros, mas a convivência forçada e inautêntica.
A aproximação hipócrita é um veneno disfarçado de doçura.
A validação externa não substitui a autenticidade.
Talvez alguma liberdade para se chamar de verdadeira liberdade se exercita na coragem de ser quem somos, de nos afastarmos daquilo que nos oprime e de nos aproximarmos daquilo que nos nutre a existência e a vida...
A distância, nesse sentido, pode ser um caminho para a construção de relações mais autênticas, mais saudáveis e mais significativas.
O ditado popular, com sua sabedoria ancestral, sentencia: "antes só do que mal acompanhado". Será? Mas, não seria essa uma simplificação excessiva e generalizada de uma questão complexa e própria da equação humana? Ou, antes, um lembrete poderoso da importância de preservar a integridade pessoal, mesmo que isso implique na solidão?
Não seria a solidão, quando escolhida conscientemente, um espaço de reencontro consigo mesmo, um laboratório onde a psiquê se reconstrói, livre das amarras da hipocrisia?
E, afinal, a companhia daqueles que nos obrigam a usar máscaras não seria, ela mesma, uma forma sutil, porém perversa, de solidão?
A hipocrisia, esse véu multifacetado que encobre a verdade, não seria um veneno lento, mas implacável, que corrói a essência das relações humanas? Manifesta-se em elogios que soam ocos, sorrisos que não alcançam os olhos, demonstrações de afeto desprovidas de calor genuíno... Mas, afinal, não são essas falsidades pequenas rachaduras que, com o tempo, se transformam em abismos intransponíveis entre o que se proclama e o que se sente, entre a máscara social e a identidade real?
La Rochefoucauld (1665/2007, p. 45), em suas "Máximas", tece uma crítica mordaz: "a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude". A ironia, aqui, é cortante. A hipocrisia, travestida de polidez ou conveniência social, não seria, no fundo, um tributo à honestidade? Um reconhecimento tácito de que a verdade, por mais que se tente ocultá-la, possui uma força intrínseca, uma superioridade moral? Mas, até que ponto essa "homenagem" compensa o desgaste de se viver em um teatro de falsidades?
A busca por aceitação e pertencimento, essa necessidade tão visceral que nos move desde os primórdios da humanidade, não deveria, jamais, ser saciada às custas da nossa autenticidade. Não seria preferível encarar a rejeição, por mais dolorosa que seja, a se perder em um labirinto de máscaras e disfarces, apenas para conquistar uma aceitação superficial e condicionada? Carl Jung (1921/2013, p. 488), em "Tipos Psicológicos", nos lança uma luz: "a solidão não vem do fato de não teres pessoas ao teu redor, mas de não poderes comunicar as coisas que te parecem importantes".
A verdadeira conexão, aquela que nutre a existência e nos faz sentir parte de algo maior do que a morte, não reside na quantidade de pessoas que nos cercam e nos seguem, mas na qualidade dos laços que construímos. E essa qualidade, por sua vez, não é alicerçada na capacidade de sermos nós mesmos, sem máscaras, sem a necessidade de agradar a todo custo? Não é, paradoxalmente, na vulnerabilidade da nossa autenticidade que reside a força para construir pontes verdadeiras com o outro? A conexão é coisa de intimidade.
Portanto, pergunto:
- Até quando nos permitiremos sufocar a nossa voz interior em nome da aprovação alheia?
- Qual o preço que estamos dispostos a pagar para pertencer a grupos que nos exigem a renúncia de quem somos?
- Não seria a solidão da autenticidade um refúgio mais saudável do que a multidão da hipocrisia?
- Afinal o que vale mais: Uma máscara socialmente aceita, ou uma face honestamente exposta?
Estudo de Caso:
Para ilustrar a problemática da aproximação hipócrita e o esgotamento que ela pode causar, apresentamos o caso de um adolescente, a quem chamaremos de Luiz. Luiz, 16 anos, chega à clínica de psicanálise acompanhado de seus pais, que relatam um quadro de esgotamento psíquico, desânimo e perda de interesse nas atividades cotidianas.
Luiz, desde o início do ano letivo, vinha se esforçando para se enquadrar nos grupos da sala de aula. Tentou praticar esportes que não lhe agradavam, participar de eventos culturais que não lhe interessavam, tudo para ser aceito pelos colegas. Adotou um estilo de se vestir que não era o seu, passou a usar gírias que não lhe eram naturais, tudo para se sentir parte de um grupo.
No entanto, esse esforço constante para agradar aos outros e ser aceito por eles acabou por esgotá-lo. Luiz se sentia cada vez mais distante de si mesmo, como se estivesse interpretando um papel que não lhe cabia. A pressão para manter as aparências, para corresponder às expectativas dos outros, tornou-se insuportável.
Na clínica, Luiz relata que se sentia "um impostor", "um falso". Tinha a sensação de que, a qualquer momento, sua máscara iria cair e ele seria desmascarado. A angústia de não ser aceito por quem ele realmente era o consumia por dentro.
A análise revelou que Luiz, desde a primeira infância, desenvolveu uma necessidade excessiva de agradar aos outros, como forma de obter aprovação e afeto. Essa necessidade, provavelmente, estava relacionada a uma dinâmica familiar em que ele se sentia cobrado a corresponder às expectativas dos pais.
O trabalho analítico consistiu em ajudar Lucas a reconhecer sua própria individualidade, a valorizar suas características únicas, a se libertar da necessidade de agradar a todo custo. Aos poucos, Luiz foi se permitindo ser ele mesmo, a expressar seus verdadeiros interesses, a se afastar daqueles com quem não se sentia à vontade.
A distância, nesse caso, foi um passo fundamental para que Luiz pudesse se reconectar consigo mesmo, recuperar sua energia vital e construir relações mais autênticas. Como afirma o psicanalista Donald Winnicott (1965/1983, p. 183), em seu texto "O medo do colapso", "o verdadeiro self só pode emergir em um ambiente que proporcione segurança e acolhimento". A simplicidade disso parece tão óbvio. Por isso que digo que a complexidade da psicanálise, quando explicada, é simples.
Considerações Finais:
Em um mundo que valoriza a aparência em detrimento da essência, a coragem de ser autêntico é um ato de resistência. A distância honesta, embora possa ser vista como um caminho solitário, é, na verdade, um caminho de liberdade. É preferível a solidão da autenticidade à companhia da hipocrisia. Como afirma o filósofo Friedrich Nietzsche (1887/2009, p. 45), em sua obra "Genealogia da Moral", "aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro". A luta contra a hipocrisia, contra a falsidade, contra a necessidade de agradar a todo custo, é uma luta que vale a pena ser travada, em nome da nossa integridade pessoal.
Referências Bibliográficas:
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013.
LA ROCHEFOUCAULD, François de. Máximas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 2015.
WINNICOTT, Donald Woods. O medo do colapso (breakdown). In: ______. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. p. 181-187.
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